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  A atualidade de Castro Alves
Arnaldo Niskier
 
   
 

Se a arte literária é sempre um desafio público, ser poeta é desafiar a opinião e a razão muitas vezes do próprio poeta. Em Castro Alves, os poemas mais fortes, muitas vezes herméticos, transmitem beleza e mistério, deixam no espírito do leitor estudioso a dúvida em relação a sua profundidade, a sua causa primeira e a sua amplitude.

O que, realmente, tocava a alma do poeta, por exemplo neste trecho de uma de suas poesias mais inspiradas, intitulada No meeting du comité du pain?

''Não deixemos, Hebreus, que a destra dos tiranos/ Manche a arca ideal de nossas ilusões./ A herança do suor, vertido há dois mil anos,/ Há de chegar intacta às novas gerações,/ Nós que somos a raça eleita do futuro,/ O filho que Deus amou, qual Benjamin...''

Em cada um desses versos, à exceção do quarto, Castro Alves relembra a história judaica. Em Os escravos, o poema Século compara a mocidade a ''Moisés no Sinai''.

O que reivindicava Castro Alves em seus poemas? Terá sido, ele também, um assumido cristão novo? Que interpretação final devemos dar, nos dias de hoje, a Vozes d'África? Logo na primeira estrofe, o poeta diz:

''Há dois mil anos te mandei meu grito.''

Que grito terá sido? Na geografia abstrata do lirismo, por onde terão voado as asas do Condor?

Resposta precisa não existe. Ditá-la, seria transformar a arte do verso numa ciência exata, com o que definitivamente não concordamos. Antônio Frederico de Castro Alves nasceu na fazenda das Cabaceiras, no interior da Bahia, no dia 14 de março de 1847, e ali viveu até os 7 anos. Junto aos pais e a sua ama-de-leite, Leopoldina, dela ouviu as primeiras histórias sobre os horrores da escravidão. Segundo um de seus biógrafos, Waldemar Matos, este lugar deixou sulcos inapagáveis na alma do poeta, que viria a ser o cantor dos escravos.

Em 1854 mudou-se para a cidade de São Félix, às margens do Rio Paraguaçu. Em Cachoeira, cidade vizinha, Castro Alves freqüentou sua primeira escola. Pouco tempo depois, a família transferiu-se para Salvador. Quando o menino completou 9 anos, a família já numerosa (com os meninos Antônio, José Antônio e Guilherme e as irmãs Elisa e Adelaide) mudou-se para uma casa maior. Castro Alves foi matriculado no Colégio Sebrão, no alto das ladeiras da Montanha e da Conceição, onde atualmente fica a Praça Castro Alves. Após o nascimento de Amélia, a última filha do casal, a família transferiu-se para o Solar da Boa Vista, em Brotas. A casa da Boa Vista, mais do que qualquer outra, ficou ligada ao poeta, transparecendo em grande parte da sua obra.

Com a morte de D. Célia, mãe de Castro Alves, em 1859, a família passou a morar no centro da cidade, no Largo do Pelourinho. Em 1862, Dr. Antônio casou-se pela segunda vez com a viúva Maria Ramos Guimarães, mudando-se para o Solar do Sodré, onde hoje é o Colégio Ipiranga. Em 1861, ainda no ginásio, o poeta declamou sua primeira poesia, na festa de comemoração da liberdade da terra baiana, graças aos heróis de Pirajá:

''Se o índio, o negro, o africano,/ E mesmo o perito hispano/ tem sofrido servidão;/ Ah! Não pode ser escravo/ Quem nasceu no solo bravo/ Da brasileira região!''

Castro Alves e o irmão José Antônio seguiram para Recife, em 1862, onde fizeram os estudos preparatórios para ingressar na Faculdade de Direito. O poeta foi reprovado na primeira tentativa, mas teve a alegria de ver publicados alguns de seus poemas no Jornal do Recife.

Fez carreira poética até chegar à glória máxima de ser exaltado nos braços do povo, quando sua poesia social tinha a finalidade ostensiva de propaganda política e mesmo revolucionária. Por isso mesmo, o bardo era conhecido como ''a tuba sonora''.

Dois fatos importantes marcaram o nome de Castro Alves na campanha abolicionista no Brasil: de um lado, a Lei Euzébio de Queirós, de 1850, reprimindo o tráfico africano e, do outro, a Lei do Ventre Livre, sancionada em 28 de setembro de 1871, dois meses depois da morte do poeta, o que ocorreu a 6 de julho daquele ano.

Que mistério faz perdurar a genialidade do poeta dos escravos, decorridos 132 anos da sua morte? Seus poemas continuam a ser admirados, pela força da sua essência.


Arnaldo Niskier é secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, e membro da Academia Brasileira de Letras.

(artigo publicado originalmente no Jornal do Brasil, no Caderno B, página B2, na edição de 19 de maio de 2004)

 
     
     
 

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