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ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
 
   
 
Posse de Marco Maciel
Discurso de Recepção pelo
Acadêmico Marcos Vilaça

Rio de Janeiro, 3 de maio de 2004.


Senhores Acadêmicos,

I

“Eis uma pessoa quase sobrenatural... não podia defini-lo melhor já que se move e fala constantemente. É monstruosamente alto e magro... um ar cavaleiresco de D. Quixote, qualquer coisa de apostólico... sempre transbordante de vida e sempre a contar histórias interessantes...”

Dá para pensar ser um desenho de Marco Maciel, mas não é. Trata-se de Bernard Shaw, visto por Bertold Brecht.

Depois de Brecht, Mario Vargas Llosa principia A guerra do fim do mundo, a saga de Canudos, com esta frase: “O homem era alto e tão magro que parecia sempre de perfil”.
Não parece Marco Maciel?

É que Marco Maciel é magro como relíquia de sacrário. Magro e alto.

O novo acadêmico chega à Academia Brasileira de Letras, alto e magro, mas não de perfil. Entra de frente, sob o pálio de valores fundamentais à convivência em nossa Casa: brasilidade, serviços à Cultura, produção intelectual, honradez irretocável, grande vida de político.

Ressalto, desde logo, a sua vertente de político, recordando Carnelutti, uma das leituras indispensáveis dos nossos tempos da Faculdade de Direito, que disse assim: “Admiro os políticos porque escolheram como profissão conviver com gente”.

Não causaria nenhum mal se este fosse o seu único título. Aqui, nunca deixamos de ter a grande cota de políticos. Todos, como no seu caso, de densa vida dedicada às Letras.

A Política é a sua vocação. Jorge Semprun conta que na admissão aos horrores de Bunchenwald indagava-se da profissão, mas profissão no sentido burocrático de produzir algo material para o campo de concentração. Quando disse: “Sou filósofo”, a reação foi braba. Isto não é profissão, rebateu a voz de censura. Retrucou Semprun: “Pode não ser profissão, mas é vocação”.

No caso de Marco Maciel poderia proclamar em nosso pórtico compromissos com a vida pública como a sua grande vocação. Seria bem aceito. A Academia não é política mas não é apolítica, nem politófoba. Esta instituição estaria desinteressada dela própria se estivesse desinteressada do destino da Pátria. A Academia é um espaço de liberdade e convívio. E de solidariedade. Tanto que, passada a eleição, queimadas as cédulas, todos se proclamam eleitos por unanimidade. É da tradição. Dizemo-lo alto e bom som.

Aqui, só se fala baixinho quando a gente escreve. Aí sim, a gente fala baixinho.

Como a modéstia é título que lhe cai muito bem, sinta-se confortável. Deste ambão não toleramos exibicionismos mas estimamos testemunhos de humildade, naquela mesma moldura doutrinada na Sétima Regra de S. Bento, que ouvimos dos monges, nos serros libertários da nossa Olinda, Olindíssima.

Se há cidades orais, Lisboa, do fado; Buenos Aires, do tango; o Rio, do samba; o Recife e Olinda são do frevo. Ao lado dessas oralidades musicais, nós sempre ouvimos ali a oralidade cívica das idéias libertárias.


Senhoras,
Senhores:

Grande entre nós, ninguém. Grande é a Academia.

Gosto de contar e vou contar novamente.

Quando esse suave e convergente homem público, esse poeta que parece vem sendo superado pelo romancista e pelo cronista, nosso José Sarney foi eleito para a Academia, teve o cuidado, neto carinhoso, de avisar ao avô, lá nas lonjuras maranhenses. O velho chamou o fogueteiro e deu-lhe ordem: solte uma dúzia de rojões. Juntou gente à porta, naquela ruazinha da cidade de Pinheiro, a indagar:


“Seu Assuero, que comemoração é essa?”

E ele:
“Meu neto José foi eleito para a Academia”.

E todo mundo:
“O que é que é Academia?”

Assuero ensinou:
“Não sei. Só sei que é coisa grande.”

Está explicado. Só a Academia é grande.

Reconheço no confrade hoje empossado o apetite preferencial pela ação pública, até mesmo porque do outro apetite não há nada a se registrar. Esta não é uma gloríola. Procede alardear-lhe vitórias, tenacidade, noites indormidas, auxiliares exaustos e desnutridos, modernidade no jeito de administrar, propostas bem maturadas. Tudo misturado adequadamente.

Bergson lembra que o intelectual na política realiza-se em homem completo, aliando o pensamento à ação e Max Weber, como o próprio Marco Maciel acabou de lembrar, arremata que a Política exige paixão, senso de responsabilidade e senso de proporção. Bergson e Weber sobram em Marco Maciel.

A leitura dos discursos, conferências e livros que nos oferece mostra a sua superfície e o seu símbolo, a ética.

Marco-Aurélio de Alcântara, há poucos dias, aplicava-lhe, com propriedade, o conceito do ensaísta português Luís Bliroco, constante de livro recentíssimo: “Política não se faz sem pessoas, mas as pessoas de nada valem em Política se não se batem por idéias”.

Com isto não quero dizer que Marco Maciel descarte o pragmático. Isto, nunca.

São clássicos dois bordões das suas conversas: “Quem tem prazo não tem pressa”; “Fique atento, pode acontecer tudo, inclusive nada”.

Com tiradas desse tipo o novo acadêmico alinha-se a Machado de Assis. O Bruxo sentenciou: O imprevisto é espécie de Deus avulso que pode ser voto decisivo na assembléia dos acontecimentos.

Luis Otavio Cavalcanti observa do modo perdulário com que Marco Maciel gasta silêncio, sem deixar de ser um crente na alquimia da conversa. Integra, entre os pernambucanos, a cota dos moderados na política, porque também temos os de pavio curto. Ou mesmo, sem pavio.

Ele é como que a versão moderna do Marquês de Olinda, para quem Câmara Cascudo reservava essa observação: “Araújo Lima não acelera, não retrograda mas também não pára”. Por isso, o estilo de Marco Maciel não tem nada de Opus Dei e tudo de “opus by day and by night”.

Por outro lado, a tradição pernambucana é a dos intelectuais engajados na política, de que Nabuco é o exemplo básico. Como Nabuco, Marco Maciel chega à Academia sem trazer da Política nenhuma decepção, nenhum amargor, nenhum ressentimento.

K. Mehnert, numa verdadeira contramão, argumenta que o intelectual nunca deveria meter-se em política, já que lhe faltam senso de oportunidade e capacidade de tomar decisões.

Bobbio diz diferente: “Na medida em que se faz político, o intelectual trai a cultura; na medida em que se recusa a fazer-se político, inutiliza-a. Ou traidor ou inutilizador.”

Gustavo Krause apreendeu muito bem o pensamento de Bobbio de superação do dilema, pois o que há nisto é distinção e integração recíproca, portadora de uma força não-política, uma força moral, sobre a qual repousa a missão política do homem de cultura.

O intelectual é espectador ativo da cena cultural, conseqüentemente, apto a perceber que o ato público abrange raio muito mais amplo do que o ato meramente intelectual.

A convivência da política com a atividade do intelectual esplende nesta Casa. Machado de Assis afirmou: “Na Academia (a política) é o sentimento mais ativo de todos e a ABL, graças ao seu quociente de mortos, jamais foi uma academia morta. Os abençoados mortos deram-lhe a mais preciosa das vidas – a vida eleitoral.”

A política concedeu a Marco Maciel, assim como a muitos dos nossos confrades, a boa oportunidade de ouvir o povo, conhecer-lhe as agruras, acumular experiências. Esse cabedal apresenta-se nos seus textos onde o político não apenas reclama direitos, mas assume responsabilidades.

Ao se sentar neste cadeiral José Sarney perguntou:

“A ação política não é, em grande parte, tanto a que se diz e a que se cala, como a que se ouve e a que se guarda; a que se imagina ter sido silenciada como principalmente a que se cumpre?”

Foi muito bom que Marco Maciel buscasse a nossa companhia. Era natural que o escritor, o professor universitário, o conferencista, o pensador, conhecesse saudações de chegança em mais uma academia, pois já as ouviu ao ser introduzido na Academia Pernambucana de Letras. Naquela ocasião, escutou de um confrade este prognóstico: “Foi natural que integre a Academia, a Pernambucana. Isto, por enquanto.” Pois bem, o “por enquanto” acabou. Marco Maciel chegou à Academia Brasileira.

II - EDUCAÇÃO E CULTURA

Muito aprecio a postura que tomou, em particular ao tempo de Ministro da Educação, na defesa da idéia de interar educação e cultura. São palavras suas:

“A educação é uma verdadeira interiorização da razão. Nela se conjugam admiravelmente os valores da tradição e do progresso, visto que por ser capaz de receber a herança dos seus antepassados, de compreendê-la e assimilá-la, é que o homem se capacita a melhorá-la e desenvolvê-la”. E mais adiante, no mesmo livro Educação e liberalismo, endossa a visão da cultura não apenas como conceito amplo, mas de abrangência, onde consideram-se tanto os bens móveis e imóveis plenos de valor histórico e artístico, quanto os bens de produção cultural. Desde então torna-se possível partir para uma política de desenvolvimento do fazer cultural de uma gente.

Na Humanidade cabe a cada um o dever de transmitir aos vindouros aquilo que recebeu dos antepassados – e aperfeiçoá-lo. É o tempo tríbio.

Marco Maciel acredita na cultura como fonte de criatividade, dinamizadora da sociedade moderna, reordenadora dessa sociedade no sentido, inclusive da superação de crises. É o passado funcionando como ponto de referência e não como algo a ser repetido.

O futuro, creio, fica desdobrado em três momentos: o futuro passado, aquele que, imaginado, não aconteceu; o futuro presente, o que hoje vem sendo concebido para o amanhã; o futuro futuro, aquele que ainda não formatamos. Para enfrentar esse futuro uma senda está aberta; se não a seguirmos ninguém esperará por este “país do futuro”: a senda do conhecimento.

Esse conhecimento é a educação galgada degrau por degrau. Exames de admissão, cursos, aprovação, medindo conhecimento. Pode ser atingido, como atualmente é proposto, também com o auxílio de discriminação positiva, passo na luta pelos direitos universais de cidadania. No entanto, como adverte Ralf Dahrendorf, sem que se torne um princípio permanente, a fim de escapar de três dúvidas.

A primeira: não haverá risco de uma espécie de injustiça invertida pela qual os tradicionalmente privilegiados se tornem os novos subprivilegiados?

A segunda: será a representação igualitária a todos os níveis realmente aquilo que todos os grupos querem ou precisam?

A última dúvida: a discriminação positiva, em alguns casos, não estaria a produzir um novo tipo de segmentação rígida que destrói a própria sociedade civil que pretende criar?
Octavio Ianni, logo quem, em entrevista já hoje clássica ao nosso confrade Alfredo Bosi, foi categórico ao dizer: “Em vez de enfrentarmos o problema na raiz – melhorando as condições sociais de brancos e negros de diferentes níveis sociais – se estabelece a cota.”

Bem, eis aí um tema para reflexão e futura avaliação do novo acadêmico, no âmbito da Educação, uma das suas maiores dedicações.

Senhoras,
Senhores:

Nas academias, é lição de Alceu de Amoroso Lima, são de duas ordens as funções – de tradição, de manutenção do que ficou de bom e merece preservação; e de criação, de renovação da cultura.

O Brasil precisa investir na Cultura e carece dos que se dediquem a ela.

Para tanto a Academia conta com a sua participação. Não lhe faltam as qualificações e não foram escassos os sofrimentos em desafios superados. Regue as nossas raízes. Carlos Castello Branco prefaciando-lhe Idéias liberais e a realidade brasileira louva sua compreensão de Cultura integrada à Educação, que vem muito do que aprendemos em nossa terra.

Quem nasce em Pernambuco, nasce no meio da história brasileira. A nossa pernambucanidade tem espírito de província, sem provincianismo e sem melancolias. Resulta da assimilação cultural que só nos faz levar à coexistência. E a História tanto avança pelo movimento dos vivos como acontece sobre o pó dos mortos.

Já disse a prócer da República que veio ironizar a suposta mania de grandeza dos pernambucanos, ao repetir aqueles refrões de “Pernambuco falando para o mundo”, “O Capibaribe e o Beberibe se juntam para formar o oceano Atlântico”, de que não temos a tal “mania de grandeza”. É um equívoco. O que temos é grandeza mesmo.

Os pedágios que a vida pública nos obriga a pagar, o caso de Frei Caneca é um deles, pagamo-los, como gosta de falar Josué Montello, deixando pelo caminho pedaços de indulgência.

Aconteceu-nos o exílio do estômago, somos pobres, mas não nos toca o desterro do espírito.

Marco Maciel, em coerência, vem expressando essas idéias uniformemente, desde os tempos, bons tempos, de aluno dos jesuítas no Colégio Nóbrega. Continuou na Faculdade de Direito, nas associações estudantis de âmbito estadual e federal, no cargo de Secretário de Estado, na Assembléia Legislativa, na bancada e na Presidência da Câmara dos Deputados, nos Ministérios da Educação e da Casa Civil, no Senado Federal, no Governo do Estado, na Vice-Presidência da República, nas organizações internacionais em representação do Brasil, nas campanhas políticas, em múltiplas tribunas, na cátedra de Direito Internacional Público.

É um coerente. É um discreto mas sem o pecado da omissão. E tenham certeza de que continua a espionar o que ainda lhe reserva o tempo, sem pressa e sem descanso.

Marco Maciel é teimoso. Não parece, mas é. Só que a sua teimosia é de utilidade pública.

Uma das coerências da obra escrita de Marco Maciel é o reconhecimento ao que aprendeu em Gilberto Freyre. É raro texto seu em que não haja pinçado uma lição gilbertiana.

Por isso, incomoda-nos tanto, a ele e a mim – no meio século de amizade que a cada dia fortalecemos, nos modos diferentes de como somos em tanta coisa – certas críticas feitas a Freyre de modo nada feliz.

Eduardo Portella, nosso confrade, mestre, mestríssimo, a esse propósito escreveu recentemente com a precisão que lhe é tão própria, o seguinte:

“As operações hermenêuticas (de Gilberto Freyre) puderam contar com o aval e o apoio do escritor, do imaginoso da linguagem. A prosa, a vida, calorosa, colorida, oxigenavam o seu desconcertante conjunto interpretativo. A ociosa separação entre o escritor e o pensador sofreu aqui os seus primeiros abalos. Na verdade ela sempre decorreu de uma insuficiência crítica – a que consiste em retirar o pensamento da linguagem, ignorando a sua parceria constitutiva.”

E segue:

“Já é hora de retirar as interpretações de Freyre, pensador ostensivamente relacional, das velhas e cansadas dicotomias... o forte de Gilberto Freyre são as correlações, as trocas não apenas materiais porém imateriais, as infiltrações e os intercâmbios simbólicos, as jornadas do desejo, todas essas instâncias da alteridade que permaneciam escondidas ou emudecidas. Ou antes de tudo permaneciam proibidas pela moral prescritiva e inabilitadas pela nossa ciência social monodisciplinar... Gilberto contribuiu para desmitificar as crenças epistemológicas das ciências sociais monodisciplinares. O que acontece é que elas jamais foram capazes de acompanhar a pluralidade das diferentes intervenções. Se Freyre fosse um sociólogo puro e duro jamais teria dado conta da diversidade brasileira, porque o sociologismo acadêmico tem se distinguido por irresistível inapetência diante do outro, do não idêntico.”


III - IDEÁRIO MACIELISTA

De todos os seus textos editados e ofertados à leitura da nossa gente, em Democracia e brasilidade, encontro o melhor cariz do seu ideário.

Do plano democrático, guardo expressivas sentenças:

“Não podemos pensar em democracia se não tivermos uma sociedade partícipe. Não podemos ter uma sociedade de excluídos. Dar o voto ao analfabeto é importante, mas não lhe assegura o direito à cidadania”.

Ou,

“...a atividade política é uma atividade dialógica, é uma atividade que pressupõe a discussão para que cheguemos à solução dos problemas”.

E, ainda:

“Não seremos uma Nação justa, equilibrada e solidária, enquanto o direito à vida, à educação, à saúde, ao trabalho e à cultura não forem assegurados a todos os brasileiros.”

Como que, para exemplificar o comportamento a adotar em nosso Plenário:

“Devo também dizer que sempre tive presente – isso para mim é uma regra de conduta – que conviver não é concordar. Podemos e devemos conviver bem sem que isso signifique necessariamente concordâncias”.

Do seu sentimento do arrocho pernambucano, sem queda da expressão da brasilidade:

“O sacrifício supremo de Frei Caneca há de estar sempre presente na consciência nacional, como exemplo da dedicação pernambucana à causa da nacionalidade e das idéias liberais”.

Ou esta outra declaração:

“...perguntaram a Carlos Drummond: Por que você não volta a Itabira? Ele disse: porque nunca saí de lá. Com isso, Drummond queria dizer que tinha dentro dele uma alma telúrica; que estava preso à sua terra, à sua gente.”

É difícil selecionar as sentenças no plano geral da Política, mas não evito reproduzir algumas.

“O Liberalismo que defendo é o Liberalismo social, que nada tem a ver como estilo de vida com o laissez-faire, laissez-passer.”

E prossegue:

“Não prego o Estado mínimo, nem acredito que a “mão invisível do mercado” seja capaz de regular com eficiência os conflitos sociais. Acredito, como Popper, que o importante em Política não é saber quem deve governar, mas sim que parcelas de nossa liberdade devemos ceder no governo. Liberalismo é humanismo, anterior a qualquer ideologia.”
Ou essa confissão do modo de idealizar e agir:

“Deve o político – como aprendi com o Padre Lebret – procurar andar mais depressa que os acontecimentos, ver com antecipação a realidade e agir prontamente sobre a causa dos problemas.”

Das valiosas e numerosas publicações sobre a questão educacional, observo o prazer intelectual com que parece resumir tudo o que ansiou doutrinar e fazer, nesta constante citação de H. G. Wells:

“A civilização é uma corrida entre a educação e a catástrofe.”

Mais duas assertivas, estas, reveladoras da fé e do espírito de família. A primeira:

“Repito com Isaías, todo ser humano é como erva, e toda a sua glória como flor do campo. A erva seca, a flor fenece e somente a palavra de Deus permanece.”

A segunda:

“...meu pai, para mim é modelo de homem público e de quem aprendi, desde muito cedo, lições do civismo.”

IV - JORNALISMO

A cadeira que lhe confiamos, Acadêmico Marco Maciel, tem um forte acento jornalístico, como bem ressaltou no seu discurso. Dá chances para revelar companheirismo com o brasileiro singular a quem sucede.

Roberto Marinho, muito moço, tornou-se homem de jornal. Marco Maciel, a mesma coisa. Com graduação, é muito óbvio, diferente, contudo igual na percepção do papel enlaçador do jornalismo, sob o ponto de vista econômico, social e cultural. Enquanto um assumiu O GLOBO, o outro, aos 14 anos, em abril de 55, faz quase 50 anos, colaborava em O TIC TAC, com circulação entre colegas, no entorno da rua Afonso Pena, onde morava. Lema do jornalzinho, datilografado e rodado em mimeógrafo: “O jornal que não diz o que pensa porque não pensa o que diz”.

À moda Roberto Marinho, chega à direção. Foi eleito Presidente. Obteve 14 votos e o adversário, Adilson Codeceira, 13. A primeira eleição, a única delas, difícil. Muda o lema do jornal para: “O jornal que diz o que pensa porque pensa o que diz.” Muito próprio dele. Como Roberto Marinho, torna clara a orientação do jornal, agrega ilustrações e charges, proíbe personalismo no noticiário, sobretudo porque o leitor percebeu que o nome do novo Presidente não consta mais nos anúncios do curso de halterofilismo. Como acabou de fazer Marco Maciel, lembro que Roberto Marinho não foi só do hipismo. Também foi boxeador.

O TIC TAC disputa leitores com jornais de bairros recifenses: PATACO-TACO, ZIZ-ZAG, RAIO e outros mais.

Adiante, outro jornal é cria sua, A VOZ DO GRÊMIO, dos alunos do Colégio Nóbrega, com estatuto, política de comunicação a cumprir, eleição de diretoria, tudo aquilo tanto do seu gosto.

Mais à frente, dirige revistas acadêmicas e de partidos políticos.

Nos dias de hoje seu comparecimento de articulista nos grandes jornais do país tem freqüência, tem leitor, tem respeitabilidade e se afina com uma certa coincidência nos mais recentes ocupantes da Cadeira 39. Digo coincidência, pois exclusivismos do tipo naturalidade, profissão predominante, não existem na seleção de nosso pares. Seria improcedente alegação dessa natureza.

Aqui não há capitanias hereditárias.

Aqui não há Cadeira de jornalista, de teatrólogo, de gaúcho, de baiano, de sacerdote, de parente, de militar, com observa em seu discurso o novo confrade.

Há Cadeiras para intelectuais merecedores, desejosos da convivência, sabedores de que quem importa é a Academia e não o transitório passageiro das glórias de Machado. Eu, e falo exclusivamente por mim, também não me apetece ter na confraria gente complicada, anticonvivial, arestosa.

Quando voto, seleciono num vestibular para as letras e noutro para a convivência. Não há distrato no contrato entre “imortais”.

O seu caso, Acadêmico Marco Maciel, é do academicoíta inteiramente academiável, como Roberto Marinho, por quem todos na casa tinham respeito e admiração.

Pessoalmente, nunca achei jeito de, entre todos os confrades, tratar a dois deles, a não ser por doutor. Doutor Barbosa Lima e Doutor Roberto.

Muito já se disse daquele nosso confrade e o seu elogio máximo acabamos de ouvir. Mas não sonego o desejo de dar-lhe o meu juízo, apenas em duas de suas tantas vertentes.

Roberto Marinho não confundiu arte e educação com entretenimento. Distinguia-os. Roberto Marinho reagiu às censuras. Não aceitou espartilho econômico imposto às manifestações artísticas, a partir do comando pessoal para que se respeitassem as identidades culturais e se promovesse a interação educação e cultura.

Roberto Marinho sabia que a integridade humana também depende da imaginação, da criação, do espetáculo das emoções, do espetáculo da vida.

Roberto Marinho tinha a percepção de que a gente não pode ver sozinho. Certo dia, fui ao seu gabinete. Queria porque queria ele que Paraty entrasse na lista dos bens reconhecidos pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. O processo dependia de passar por mim, Secretário Federal da Cultura. Na oportunidade, não havia condições técnicas. Fui lá dar-lhe um drible de corpo. Coisa difícil. Creiam, consegui. E ainda não éramos confrades, nem amigos, simples conhecidos.

Começou, como fazia com os visitantes, a mostrar, da grande janela envidraçada do escritório no Jardim Botânico, uma das mais espetaculares vista desse nosso tão espetacular Rio de Janeiro.

Lembrei-me do poeta uruguaio que chegando ao Rio, foi ao Corcovado num finalzinho de tarde. O sol descendo, as luzes começando a acender lá por baixo, pelas praias, ruas, morros, casinhas, edifícios e mansões. Encantou-se. Ao lado, uma criança. Chamou a brasileirinha e lhe disse:

– Venha ver comigo. Ajude os meus olhos. Eles precisam ver isto. Sozinhos, é impossível. É a beleza.

Roberto Marinho gostou do que ouviu. Disse, cerimonioso e categórico:

– Doutor Marcos, vou reunir os filhos, para juntos vermos o Rio. É verdade. É preciso juntar as retinas.

Roberto Marinho valorizava o ver junto. Queria os olhos dos filhos para ajudá-lo a ver, aqueles filhos que o ajudaram, aprenderam com ele e hoje, de forma salutar e competente, fazem por ele, em nome dele.

Outra coisa: os amigos mais próximos habituaram-se, nas reuniões sociais, nos encontros históricos e de bom gosto no Cosme Velho, entre uma conversa e outra, ouvi-lo a repetir o bordão do coração:

“Cadê Lily?”

O Cadê Lily era a voz interior, ostensivamente de bem-querer, de partilha, de segurança, de opção feita em diversos tempos e numa só e definitiva consagração.

Dona Lily precisava estar perto, a fim de ajudá-lo a escutar. Pareceu-me a cena em que Shakespeare põe Marco Antônio, com César aos braços, bradando no discurso estupendo:

“Amigos, romanos, emprestem-me os seus ouvidos.”

Dona Lily, Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto continuam ouvindo e vendo por Roberto Marinho.

V - HOMEM DE FÉ

Acadêmico Marco Maciel:

Já se foi o tempo em que a folhagem do arvoredo da rua Afonso Pena e as mangueiras do pátio do Colégio Nóbrega abanavam o tempo, que fluía macio para a nossa juventude.

Oscar Wilde garantia que a tragédia da velhice é que continuamos jovens. Sessentões, na descendente da parábola, já estamos nos longes da saudade. A sua expressão da saudade deve ter dado um jeito de estar aqui, acolitada por Gisela, Christiana, João Maurício, seus genros, seus netos, ao comando de Anna Maria. A minha expressão de saudade também deve estar por aqui. Ele foi seu xará e muito seu amigo. Admirava-o.

Mia Couto, nosso confrade e grande escritor moçambicano, escreveu que um morto amado nunca pára de morrer. No meu coração há um gemido do inacabado. É a saudade do filho. O seu coração também geme. É a saudade da Dona Carmen.

Sorte nossa é que o frescor das emoções desta noite suplanta o nosso envelhecimento físico, convive com as saudades e nos lança ao desafio de roer o tempo, em atitude de paciência e persistência.

Nesta fase da vida, não podendo dar maus exemplos, damos conselhos.

Marco Maciel tem visível e praticante acento eclesiástico. Sua convicção religiosa é exemplar. A formação, uma apoteose cristocêntrica de serenidade e conhecimento. Apreciam-na de congregados marianos a incréus.

Desconfio que se houvesse escolhido o sacerdócio, hoje o saudaria assim:

Dom Marco Antonio, Cardeal Maciel.

Imagino, só por provocação, o brilho nos Concílios, as articulações nos corredores do Vaticano, o contributo espiritual à redação das Encíclicas, a oportunidade do solidéu e a impossibilidade da tonsura, o séquito de mitríferos, baculíferos e turibulários, tudo encimado pelo exemplo das virtudes teologais.

Mas foi bom que Deus o tenha destinado para ser pai de família, grande pai de família. Foi muito bom!

Em verdade, em verdade a todos digo que fascina a sua postura de católico. A sua Igreja é a da mão estendida, a do amor. Não posso, jamais, imaginá-lo em atitudes de intolerância, de má vontade, afastando fiéis, sem compreender sentimentos de jovens, desatento aos motivos dos mais velhos, marginalizando sonhos familiares de sadia construção, ignorante dos serviços prestados por membro da comunidade, encharcado de preconceitos, confundindo arte com lascívia, como certos mentecaptos que, trepados em autoridade eclesiástica, são contra museus de arte sacra, dizendo que lugar de imagem é nos altares.

A sua Igreja tem éclat. Não é a distorção da Igreja. Não atemoriza, não estimula diáspora, não escurece, não separa.

Cedo, Marco Maciel tornou-se notoriedade sem restrições. Tem dignidade exemplar, na sua modelagem de discrição e modéstia.

Mas como identificar o balizamento da conduta de Marco Maciel sem os pais, Dona Carmem e Doutor Maciel, e a mulher Anna Maria, a admirável Anna Maria?

Heine estava certo ao reconhecer que o escritor, em casa, precisa contar com o silêncio da companheira. O político também, digo eu. Não só do silêncio mas da palavra que, não o quebrando, ajude na hora polêmica; que, não o violando, seja a confiança ante ameaça de tropeços.

E Anna Maria nunca faltou.

E o pai, o quase centenário e tão lúcido Doutor Maciel?

O filho mesmo pode explicar, como neste texto:

“E no seu exemplo (do pai), aprendi a identificá-la (a política) como uma síntese de desprendimento e coragem, conhecimento e ação, de ousadia e prudência, de inteligência, discernimento e responsabilidade.”

Já da Dona Carmem quero contar cena que mantenho na mente e que faz parte daquela conversa do coração de mãe, a desfibrar fibra por fibra.

Era época de vestibular para a Faculdade de Direito. Muita queima de pestana. Madrugadas de olho aberto. Alegrias adiadas. A casa repleta de colegas para estudos em grupo, desatentos à alimentação e concentrados nos livros. Ele fugindo de Dona Carmem. Ela implora, sem sucesso, que tome, pelo menos, um copo de leite. Vencida, desabafa:

“Quando passar o vestibular, vou tomar conta da alimentação deste menino”.

Ao que parece, o vestibular continua...

Acadêmico Marco Maciel:

O seu discurso é um ato de fé, aquela operária de todas as vitórias. A fé, o povo, o sol das praças são imagens da sua fala.

O Brasil confia, ainda que dessangrado, despossuído, nos seus filhos, nos seus líderes. Se já não temos heróis, pelo menos que nos protejam os líderes, no esforço de olhar para os humildes destinos dos que deslizam em nosso derredor.

Bernard Shaw dizia que só temos tempo bastante para pensar no futuro quando já não há futuro em que pensar.

Então, cuidemos. Não consintamos que a oportunidade vá fluindo lentamente como o tempo dos meninos. Há que vigiar o amanhecer. É preciso buscar novas alvoradas. Poentes não tem intimidade com o futuro. Sonhemos. O sonho é o olho do futuro.

Senhor Presidente,
Confrades,
Família Maciel,
Família Marinho,
Senhoras, Senhores,
Dileto confrade Marco Maciel:

Vida que segue.

Para Vinícius de Moraes, em pessimismo:

“Tem dias que eu fico
Pensando na vida
E sinceramente não vejo saída
Pois é: a vida tem sempre razão
Pois é: a vida é que está com razão.”

Para João Cabral, igualmente lúcido:

“Sei que traçar no papel
é mais fácil que na vida
Sei que o mundo jamais é
a página pura e passiva
O mundo não é uma folha
de papel, receptiva
Mas o sol me deu a idéia
de um mundo claro algum dia.”

Já para Drummond, em conformismo:
“Êta vida besta, meu Deus.”

Vou terminar. Mas só o faço juntando o futebol, que nos une e nos separa. Eu sou do Náutico. Ele, do Santa Cruz. Falamos de futebol todo o tempo e juntos gostamos de recordar, rindo do seu tom apaixonado, a frase excessiva de Albert Camus: “Tudo o que sei sobre a moral, o comportamento e as obrigações do homem, eu devo ao futebol.”

Olavo, zagueiro do Olaria, aqui do Rio de Janeiro, na década de 60, ainda que de um time perdedor, só enxergava otimismo. É dele a frase:

“Tudo fazeremo pela vitória.”

Eu, me segurando nos comigos de mim, sugiro ao acadêmico Marco Maciel: siga o Olavo.

 
     
     
 

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