página diária dos participantes da nossa lista de discussão literária
        A consciência que tenho de mim traça, bem acima da minha cabeça, uma  linha reta bem definida, evidente, com indiscutíveis "começo", "meio" e "fim". Ser tomado pelo amor, pelo ciúme,  desespero, erotismo, desassossego é o que me concede a mortalidade. As palavras com que legendo  cada ato amoroso; todos os seres do mundo apaixonados por quem amo, cobiçando-o diante de mim que tenho punhos  atados e vivo sob a ameaça contínua de uma arma branca do Criador roçando meu pescoço; as agonias que  precedem mãos desejadas em nosso corpo; o desengano que sucede a cada partida dessas mesmas mãos; enfim, o desenrolar de tudo o que produzo e me reservam, constitui a assinatura final da minha sentença de  morte.

        Anos atrás, perdi muitas horas divagando sobre a frase "cometida" por um  personagem do romance de Thomas Hardy, "Judas, o Obscuro": "Gostaria muito das flores, muito mesmo, se  não ficasse todo o tempo pensando que dentro de alguns dias elas estarão todas murchas!"... Que garoto  louco, aquele... Bastava mudar de canteiro, jardim, alameda, para que amanhã, depois de amanhã, ano que vem,  próxima década encontrasse totens de roseiras, gerânios e acácias florando... Toda flor é imortal, todo  bicho é imortal, toda pedra é imortal, todo deus é eterno, porque assim ordenam nossas carências, passionalidades,  ânsias estéticas, religiosas, sensuais, desejos de criação... Cada mamilo, pólen, cada glande ou clitóris,  cada boca, abelha pousada em veias quentes, tudo isso são ícones de uma desmedida continuidade no tempo... O  passageiro, o efêmero, o acidental turista sou eu com a minha fome, vertigens, rubores... Ah, se eu consigo ser  alimento, licor, ímã, esperança para alguém, serei cíclico com a natureza, autor das minhas próprias  estações... Dispor da vida me garante a morte... Estar disponível, a imortalidade.

        Só desejarei escrever, pensar, penar, se texto, idéia e dor derem frutos  vermelhos e doces afogados na saliva de alguém... Prefiro ser assunto, verso, diário, a crônica de uns e outros...  Nada de procurar entender livros sagrados. Preciso acreditar, encontrar Deus para me convencer de que, apesar  de tudo, de todos os meus atos cometidos, autorias, surtos de auto-suficiência, nunca ultrapassarei a  opulência do círculo de giz traçado para as criaturas. Por mais aguçado que pretendesse meu pensamento, ser pensado por  Ele ainda seria o máximo trunfo. A Eternidade (ou uma firme Identidade) é incandescência demais... O  transitório, breu. A mim, basta o nunca acabar das flores e dos animais que se reproduzem, irmanam-se, devoram-se,  confundem-se entre si resultando em perpetuidade.

        Apesar do lastro comum das nossas misérias e glórias, a minha consciência  é um afluente único, por onde correm minhas peculiaridades, meus dramas... Ela é um olho singular mirando  outros afluentes unos amados, outras consciências que igual aos bichos, as flores continuam a se  reproduzir, irmanar-se, devorar-se, confundir-se, garantindo a "perpetuidade" num tanto de tempo precário.

        Os cães circulando entre os jacintos e sempre-vivas não sabem que vão  morrer. Nós os matamos com a nossa consciência, certeza da morte....

        As flores são colhidas do seu meio, para grinaldas das noivas...

        Eu, ceifado prematuro por não sei quantos medos.

        Um filósofo alemão e um pedreiro que conheci anos atrás falaram que não sobreviveriam à morte de suasamadas... Torturavam-se perante perspectivas, quando poderiam passear, explorar o tempo juntos, indivisos, por entre os mesmos jacintos e sempre-vivas.

        Semana passada uma mulher do povo sentenciou: "Vou matar meu cachorro.  Ele passou a noite uivando, agourando minha morte". Coitada, esqueceu que lá fora a segunda lua cheia de  janeiro era azul e comovia o animal até o último uivo.


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