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discussão literária
Sonhos Azuis
Debruço meu olhar sobre o azul.
Não o do céu.
Não o do oceano.
Mas o daquela linha distante
onde os dois se juntam e, violentamente,
me empurra para todos os horizontes.
O azul do horizonte visto alargado ainda quando a
criança que fui e que há muito deixei de ser.
Sabiamente, com garra, não deixei escapar a percepção
de ser. Horizonte
dos horizontes multiplicados em
infindáveis tonalidades azuis.
Deixo crescer os azuis dos horizontes
como quem não tem outra opção senão a de.
Amei em águas distantes que
só agora esta linha fina ao longe me faz
lembrar que todo o amor
desgastado,
triturado,
dobrado em peças finas de cambraias
também era de cor azul e
a confusão dos atos não me fez perceber a tempo.
No calor das chamas, não senti
que o fogo teve o poder de embotar o meu pensar.
Queimei-me em labaredas selvagens.
Molhei meus ossos com ungüentos satânicos.
Ardi minha alma em profanas celebrações.
Desprezei as pérolas!
Paguei todos os meus pecados
e agora tenho um crédito.
Nunca tinha notado isso antes e foi preciso
eu debruçar o meu olhar nesse horizonte,
neste exato momento,
para que tomasse consciência do fato.
Precisei desfolhar as dobras dos atos idos,
já mofadas pelo frio, já flácidas pelo úmido
passado,
um tanto frágeis pela falta do manusear.
Pensei que tinha esquecido de tudo,
apagado de uma vez por todas da memória --
agora acostumada pelo entupimento de experiências
provocadas propositalmente e com intento acertado.
Vã ilusão adormecida!
Determinado medo que sempre fingi não existir
e que o meu silêncio quis iludir todas as lembranças
deliberadamente negadas: azuis.
Ah... tolo fui em não querer perceber
que tudo o que criava para empuxar
um passado inapagado pelas cinzas,
cedo ou tarde,
renasceria como fero fênix,
vivíssimo a me mostrar que tudo foi assim, azul.
Arranhei-me,
rasguei o sangue na garganta,
dilacerei a carne como o agricultor separa a terra com uma enxada,
quis me arrebentar por dentro como que querendo a morte.
Corri com o pé-de-vento tentando esquecer,
tirei o pé da cova como num milagre
e revivi sonhando com outra vida a vir.
Pensei com azeite doce os olhos das feridas,
deixei que as cicatrizes se apagassem sós.
Fiz um plantio demente de uma inconsciente semeadura.
Enquanto um azul ali adormecido
multiplicava-se em outros horizontes,
tantos outros azuis se dilaceravam em outras águas,
pululando em choros em vidas em novas formas.
Se coloquei os olhos na caixa para
esse fecho de luz por tantos fevereiros,
tudo foi em vão e inútil. Os olhos,
desencaixados, se abriram e, agora,
mais que nunca,
consigo ver todos os azuis.
O azul do céu.
O azul das águas e dos sonhos.
O azul das linhas de todos os horizontes
que me transportam para o sonho de outros sonhos
que serão azuis.
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