Vestígios
Uma das recomendações
de Freud para quem pretende interpretar sonhos é revisar os
acontecimentos do dia anterior ao sonho lembrado. Há sempre algum
vestígio do que se viveu recentemente - mesmo que sob algum disfarce
— no núcleo dos conteúdos oníricos. Pois
bem, acordei hoje tomado pelas imagens e sensações
de um sonho noturno e há horas tento resgatar dele algum traço
do complicado dia que vivi ontem... Ainda não obtive sucesso,
mas anotei curiosidades inesperadas. O que me chamou atenção
de início é que o desenrolar dos acontecimentos do dia de
ontem inclina-se mais a uma textura de sonhos, do que o sonho propriamente
dito, desta madrugada. Resolvi inverter os fatores e tentar entender os
"fatos" da véspera a partir da trama sonhada hoje. Alguma compreensão
começou a surgir. Toda a manhã de ontem foi marcada por cobranças,
desde uma conta a ser paga, com prazo vencido até algumas indagações
quase inquisitoriais que eu mesmo impus a Branca Dias que há em
mim. Sentia uma tontura, quase vertigem a cada indagação
com fogueira implícita, que impiedosamente me lançava. No
ato de condenação constavam a minha inoperância, leviandade,
inadequação aos dias, promiscuidade à noite, insatisfação
não,mais grave: insaciedade, ninfomania, satirismo diante das salutares
conveniências... Percebia sutil cada acusação e os
olhos
espremiam-se no rosto igual às dores pelas mordidas e amor injetado
nas horas de paixão. Sim, paixão, mas não aquela afeita
a coroas de espinhos e calvário... E uma túnica branca ia
se tecendo, ajustando à minha pele, e a temperatura alta de Recife
assumia aos poucos calores de lenha incendiando. Débito financeiro,
moral, do espírito e do sexo - o único que dava mostras de
pronto reembolso... Enquanto os olhos se apertavam acontecia um conspirar
genital para dilatação, desabrochamento, exposição
da sua flora. Aumento de indignação, escândalo, reprovação,
o golpe certeiro da foice do vento quando cessa. A condenação
não oficial, a pior, aquela que se renova em todos os tempos e não
se cumpre...!
E o meu corpo de moça perambulando para a trégua do sonho
que a noite traz. Foi mais ou menos assim que transcorreu o dia, que dei
por encerrado ao deitar para tentar dormir. O sonho ocorrido não
trazia cobrança, mas constatações, alguma procura.
Um grande shopping de enormes corredores brancos quase de hospital. Eu
andava incansavelmente por todas as vias, coberto apenas por uma grande
camisa. Sentia-me lúcido quase ao ponto de me constranger. Era como
se estivesse discretamente despido, uma nudez sob sutil disfarce que ainda
me permitia circular socialmente, passear por um mundo que se colocava
à venda e cujo preço eu nem sei se poderia pagar, mas não
me preocupava... Nada interessava, porque o meu alvo de busca era
o meu par, uma pessoa amada que eu perseguia a distância. Eram os
mesmos corredores sempre. Ao final de cada, um portal para outros ambientes...
Havia tanta clareza em tudo, ao contrário do pesadelo difuso de
cobranças, inquisições na vigília da véspera,
que eu nem me permitia supor sonhando. Atravessava aqueles corredores
como quem cumpre estágios de iniciação, pensamentos,
reflexões apontando para um insight. Chegou um momento em que minha
única veste, a comprida camisa deu para enganchar nos portais, e
num enforço para soltá-la, algum pedaço do tecido
resultava preso nos obstáculos... Isso se repetiu várias
vezes até um ponto em que quase nada mais sobrava da minha pouca
roupa. Trajeto de amor perseguido parece sempre assim marcado por estraçalhamentos.
Se estive ontem e estarei amanhã multiplamente endividado é
decorrência do meu escancaramento para o amor a me tomar, a não
me tornar cidadão, a fazer de mim uma louca que luz,
Adèle Hugo, maltrapilha e solta no mundo à procura do seu
soldado inglês. Branca, dias desvendados por Adèle.