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Karezza, Karezza 

        Parece que estatisticamente a "dor" está em alta na "Mixagem". Li o  poema da Kk, toda a poesia que ele detonou por aqui, cheguei a apagar as luzes e me transportar para uma arena  romana, mártir cristão a espera das presas das feras... Nada, nem sequer circo ou pão. Reli o poema e  imaginei tantas antigas dores... Não consegui me concentrar nas repercussões dos seus efeitos. Sei que nunca as convidei ao meu convívio, nem a elas nem a um monte de outras posibilidades humanas... As dores de quando fui  traído por um amante na adolescência poderiam respaldar os versos que eu relia, pela tragicidade ...
Só consegui lembrar do quanto aquele menino era feio e vulgar e repelente e vazio e o nada de aprendizado  que restou da paixão por ele. A dor, hoje acredito, naquela ocasião, foi mais tontura, vertigem histérica. Os tormentos das dores menstruais de uma querida amiga, até me passaram pela cabeça... Ela, todo mês, promove um chá das cinco para recepcionar os próximos dias dolorosos. Pensei em algo mais grave, nas dores pulmonares e  mentais de Katherine Mansfield ao declinar... Apelei para a lembrança das dores morais, estéticas, espirituais,  sexuais, as mais baixas... Frígido que eu sou, nada... Homem álgido, bruto, besta, covarde, descrente... Foi  quando comecei a perceber o poema via comichões cruzando as coxas, apontando atos de entrega insuspeitos. Tornei a ler a "dor" e percebi, atrasado, a carga de erotismo daqueles versos. O susto: Lançou-se sobre mim nenhum leão, eram outras as garras, outra autoria. KK...Lembrei da "karezza, karezza"... Alguém enviou  para "R", um querido amigo com o qual convivo há anos, um texto bastante curioso, ensinando passo-a-passo como entrar num barato sem o uso de cocaína, mescalina, maconha... Uma das técnicas descritas, a referida  "karezza", consiste em "repetidamente, praticar a masturbação até bem próximo do momento do orgasmo, quando então suspende-se a estimulação. Isso é feito cinco, dez, vinte vezes, até que o corpo desista de atingir o  orgasmo. Exatamente nesse momento, misturada a certas dores, a mente se expande para dimensões além da imaginação..."

    "R", que se mostrava, na época, atordoado por tantos bombardeios  americanos no local preferido dos seus sonhos infantis - Bagdá -, resolveu experimentar a "karezza", e já na quarta  repetição, expandiu-se e me cedeu algum material das suas expansões para que eu fizesse dele o que bem entendesse... Não me fiz de rogado e coloquei mais do que as mãos: as pequenas tetas na massa... "R" vive cercado  por admiradores, gente que lhe presta culto, fazendo dele "astro maior, amado, invejado, inatingível,  impalpável" e, por outro lado, esquizofrenogênicamente, manteiga derretida, delicado vaso a toda hora  quebrável, não-me-toques, melindroso... Atribuem isso ao caráter transcendente da sua personalidade. Eu, apesar de muito vulnerável, mas nada idolatrado, amo muito a mim mesmo e faço novos usos desses ingredientes: sou aquela manteiga que Marlon Brando até hoje ainda passa no corpo da Maria Schneider nas reprises do "Ultimo Tango em Paris"... Sou todo-me-toques-me-pegues-esfregues e sem melindres (bem à "moda out-side" do início do século)... Não imagino que alguém como o "R", por mais qualidades que possua, possa ser  amado, nem sequer admirado, se inspira piedade, cuidados, precauções, zelos... Ele é amado com requintes de  zelo, seu corpo requer luvas de pelica... Suas dores costumam exigir um parteiro por perto... Isso me faz  enxergar a imagem de um belo parque de diversões totalmente colorido, iluminado, repleto de cheiros, mas vazio, silencioso e sobre um terreno minado. Particularmente ficaria louco diante de uma vida onde não pudesse meter os pés, o nariz, a língua e as fendas pelas mãos. Meu desejo secreto de criança: Não apenas engolir a seco,  mas provar o sabor do pão das hóstias... Sacrário, sim, teria que haver, mas para os meus medos, dúvidas, complicações, não para o meu coração, não para o corpo de Jesus que é similar ao do Homem que eu amo...

    O peito amável do "R" é guardado, mantido desde criança em sacrário coberto por veludo roxo, para não se perder como o resto do seu corpo, desde cedo marcado por mordidas e fogo ... Esse peito encanta ainda, porque foi assim preservado... Não cobram dele nada que ultrapasse o limiar de um coração nada eucarístico... Um coração que não é hóstia, sem artérias ligadas, sem dores, sem nenhum veio de comunicação com aquilo que até a primeira infância foi seu corpo. Tenho uma suspeita... Creio que ele guarda  seu coração como alguns doentes condenados, no futuro, congelarão seus corpos para aguardar uma remota cura.

     R, parece-me, até hoje pratica a karezza, largado no quarto, nada cordial câmara escura. Continua e me fornecer sangue e respiração para lastimá-lo... Acho que os restos dele são regidos pelos estados alterados de  ventre, membros e pela fome... Esses restos são operários do que ele preserva guardado... Desconfio que aqueles nus pintados na parede são a ante-sala do tal sacrário, para onde ele carrega em uma única noite do ano, a alma da sua Amada. Aliás, não se trata apenas de uma alma, mas de liames, que ele ata ao seu coração arrancado, para formar um "ser único", literalmente, sem metáfora e cordialmente transbordante, mas apenas por alguns isolados momentos que ali mesmo se exaurem.... "R" sai do sacrário carente de memória para os seus restos... Respira, descompassado, ao sabor do que existe em volta: um blue, o calor pouco passional do que é  externo, ou de uma má notícia, uma dor vadia, uma melancolia de quem se sabe partido.

    Ouço sons de vidros espatifados, janelas batendo, o abafado som de asas de um corvo... Acho que ele acordou. Talvez, após algum tumulto, haja alcançado um céu ou fracassado ao ejacular sobre a tez da poltrona... Seja o que for, com dor no peito, retorno aos braços dele.


 


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