Ninguém
Nina Ribeiro – que eu não sei quem é – costuma enviar para o meu endereço postal mensagens apaixonadas dirigidas a outra mulher (Nívea). Sempre me intrigou receber essas cartas... A maioria revela uma paixão anavalhada, a expandir urtigas pelo campo de sonhos do meu corpo leitor. Cada passar de olhos nesses textos, inicialmente, provoca-me a sensação de que diante de tanta carne nas juras, eu não passo de fantasma escaldado na espreita de intimidades alheias. Aqui e acolá, porém, meu corpo vai retomando seu posto e chego, de cara lavada, a me sentir de fato – por alguma imprevista carência ou atração pelo desconhecido – a outra, a Nívea Luza, a amada.
Uma recordação: o filme de Woody Allen ( A Outra). Uma mulher costumava ouvir, através das paredes, o que se passava num consultório vizinho, pertencente a uma psicanalista... Ela, nesses momentos, promovia uma escutaenvolvente, tremendamente humana, portanto, nada neutra, pontuada por paixão.
Mais uma lembrança: a personagem central da peça "Vestido de Noiva"(Nelson Rodrigues), lendo ávida, "brechando" o diário de uma prostituta.
O curioso em todas essas ocorrências é que a surpresa provocada no início, ao se deparar com a privacidade alheia, vai cedendo lugar a uma identificação gradual e imprevista com aquilo que se sabe pertencer a outrem – não importa quem seja: anônima missivista, psicanalista, prostituta, freira, freituta, proscanalista ou sei lá o quê. Chega-se a um instante em que nos sentimos perfeitamente introduzidos, integrando a "trama do outro"... Um pensamento parece inevitável: de uma forma ou de outra temos a ver com tudo, com todos os que nos amam, abandonam, odeiam, rodeiam ou desconhecemos, por mais que pareçam "outros", bizarros, estrangeiros, alienígenas... Quem já parou para fixar a vista, prolongada e indefinidamente, em algum objeto ou paisagem, conhece aquele instante em que tudo se mistura, a vista turva-se, uma luminosidade diferente assinala que estamos tragando o alvo observado (igualzinho ao ritual dos primitivos canibais ao comer corações de inimigos vencidos para obter seus dotes). Creio mesmo que a misericórdia, a piedade, o amor, a fraternidade partem desse nosso Dom virtual de brechar, espiar a nudez do vizinho ou escutar por trás das portas, suas súplicas, suas blasfêmias e beijinhos... Permanecer algum tempo escondido na moita poderia ser uma boa universidade, um bom livro, um grande oficio, desde que de lá você saia tomado por torpor, meio enamorado por tudo o que viu.
Meu amor nunca falou comigo tomado pela raiva, mas certa vez, de um quarto vizinho, ouvi quando ele se dirigia colérico a alguém que parece haver amado... Senti, brevemente, a dor de uma ferida que em mim ali se encravou, provocada por quem nunca sequer me ameaçou com um esboço de mau olhar. Pensei que nossa relação a partir dali poderia avolumar-se, porque até então, na minha cegueira convencional de amante, só incorporava os sussurros e afagos das "metidas"... No interior da nossa paixão nenhuma cruz, nunca conseguimos enquadrar desfeitas, ódios e outros sangramentos... Mas eu havia, naquele momento, às escondidas, flagrado a sua ira, recebido no mais sensível da pele, seus arranhões... Ali, aqueci e revisei meu amor.
Quando pretendo criar laços preciso transpor o que me é oferecido pelo outro... Busco todas as brechas, todas as frágeis e viáveis paredes, muros espiáveis, todas as atalaias... Pretendo assimilar também o meu amor fora da minha cena. Quero flagrá-lo com seus antepassados, nos diários que ele apanha nos sótãos, espreitá-lo em todos os precipícios em que se debruça às escondidas...
Nas paredes de todos os quartos que freqüento há sempre uma pequena abertura em algum dia cavada pelos meus olhos. Desejo flagrar em qualquer tempo linhas cruzadas paralelas, que me permitam ao menos entreouvir uma remota confissão, um segredo, uma jura, qualquer palavra a mim "não pertinente", mas que de uma forma misteriosa transforme minha vida.
Hoje resolvi responder a última carta de Nina Ribeiro, que eu passei, ao longo dos dias, a conhecer bem pelo amor que diz sentir por... mim? Lamentei não acreditar nas promessas de "amor eterno" que me faz. Gosto do relato dos seus seios, acrescento; de todos os seis picos que se espalham pelo seu corpo, eu me atiraria... Uma confissão porém se faz necessária, querida Nina. Lendo suas cartas passei a crer que tem um irmão, Nilson. Ele é generoso, dócil... Quando você diz me beijar próximo ao umbigo, Nilson já mergulhou e me trouxe do fundo, pedras marinhas. Certa vez, ao ler uma das suas cartas, Nina, tive a impressão de ouvir no quarto vizinho ao meu a voz dele falando colérico com uma antiga amante. Seria Nívea, essa mulher que ele amou? Nunca li nenhuma referência a existência de Nilson nas suas mensagens, e talvez isso aumente o meu amor por ele, justifique a paz do nosso laço. Peço compreensão, suplico. Quantos namoros ele teve, Nina? Existe em algum canto da casa, restos de antigos flertes nos quais eu possa enfiar os olhos? Alguma marca de indelével porra pelo chão, onde possa deslizar a língua? ...
Tremores e frios suores.
Olho para os lados...
Tem alguém aí? Quem me brecha? Nina, Ninguém? Aqui está escuro, seco e sem luz. Não encontro nada, sequer as relíquias de Nina, as meias-(evidências) de Nilson atiradas à-toa...
O que carrego nas mãos?
Quem ainda me brecha, por favor tape os ouvidos, agora, e não me lamente