Judische Kopf
Falei ontem em conversa com uns amigos, num surto de ingenuidade, o quanto era bom aqui não ser a Áustria... Como se aqui não fosse a nossa velha Terra. À noite me deparo com a notícia de que um rapaz foi assassinado em São Paulo pelos inqualificáveis skinheads. Mais grave ainda saber que a ação desse grupo vem se tornando rotina no País. Em 1992 a Rádio Atual que transmite programas nordestinos em São Paulo foi invadida e suas paredes pichadas com frases debilóides. Em Santo André, no mesmo ano, dois garotos judeus foram espancados por um grupo e 12 desequilibrados neonazistas. Em 93 mais quatro registros de ataques de skinheads. Mataram o estudante Fábio Henrique Oliveira, de 15 anos, por ser negro, também em Santo André. No dia seguinte, em São Bernardo foi esfaqueado por haver dado uma entrevista criticando a gangue. Em Fortaleza um grupo de 40 skins matou a facadas o estudante Jorge Miranda, dentro de uma pizzaria. Em Ribeirão Preto, um menor de 16 anos confessou haver matado um menino de rua para "limpar a cidade". Em 1996, em Curitiba, dois skinheads agrediram com cinco facadas o travesti Felipe Pucci. Ainda em Curitiba, no mesmo ano, Carlos Adilson Siqueira, negro, foi morto por um skin. Em São Paulo, um arrastão de violência promovido por 20 skinheads resultou na morte do artista plástico Nilton Verdini. Esses foram apenas os casos mais noticiados e de que tenho conhecimento. .
Esses fatos envolvendo skinheads, o fortalecimento de movimentos neonazistas pelo mundo, o culto disseminado a certas características raciais que vem se evidenciando, as experiências de clonagem que se vão divulgando, sob alguns "aparatos atenuantes", tudo isso vem instigando nossa incredulidade. Tanto se falava de uma tendência espiritualista neste final de milênio, e o que mais temos assistido é à proliferação de seitas radicais , que se expressam comumente de uma forma parcial, agressiva, intolerante, irracional. Sabemos que em muitas seitas, igrejas pentecostais isso e aquilo em nome de livrar a humanidade de espíritos malignos, maltrata-se, difama-se e até se espanca homossexuais, mulheres de rua, viciados, etc, etc. Ano passado uma cliente minha, paraplégica, ao sair do meu consultório, foi vaiada por um grupo de estudantes de um conhecido colégio classe média aqui em Recife. Além das vaias, dos apupos, gritavam coisas como "aleijada", "troncha"... Já presenciei inúmeras vezes, doentes mentais, em plena via pública, serem maltratados, como se fosse a coisa mais natural, trivial do mundo. As pessoas continuam xingando os judeus, os negros, os homossexuais, as minorias de uma forma geral, e sob argumentos do tipo "Ah, é apenas uma simples piada inconsequente"; "oh, isso eu ouvi num ótimo programa inteligente, de humor politicamente incorreto, sucesso em livro, vídeo e na WEB. Não tem importância..." Assisti a algum tempo a um especial numa dessas tvs por assinatura em que a jornalista se deu ao "luxo" duvidoso de acompanhar o dia a dia de famigerados skinheads, tentando entender sua linguagem, hábitos, "filosofia", "valores"... Mostrava-se simpática, inclusive fantasiando-se ao modo deles para acompanhá-los em alguns dos seus redutos...
A dor da minha cliente sendo vaida por ser "aleijada", um impropério gritado a alguém por sua "condição sexual", um comentário maldoso dirigido a outrem por ser negro, judeu ou de rua... As dores que tudo isso provoca não diferem muito daquelas que são aplicadas, fisicamente falando... Acredito que as tenebrosas expressões humanas de crueldade e intolerância, modificam seus traços, variam suas irrupções, suas vestes, seus estilos mas estão sempre vivas, pulsando, exercendo-se das mais variadas formas. A tragédia provavelmente não se instala definitivamente entre nós porque, por outro lado, as manifestações humanas de sublimidade também pulsam e se evidenciam através das mais insuspeitas vias... Observemos os judeus que por tradição experimentaram encrencas, dificuldades e sofrimento muito de todas as sortes... Essa vivência deles creio que aguçou uma visão de vida, a perspicácia que passou a ser popularmente conhecida como "Judische Kopf" (ou "cabeça de judeu"). Eu acredito na "cabeça de gente oprimida", que todos nós temos, pelas próprias limitações que a condição humana oferece. Mas nem todos querem reconhecer isso, lógico. Os carecas neonazistas, os adolescentes cruéis, o vizinho perseguidor e fascista carregam apenas, mesmo fazendo de conta que estão em um pódio, a desolação e carência radical de qualquer sutileza para assimilar o sublime que de alguma forma nos é concedido. São "cegos" que não desenvolvem o tato e olfato, a visão interior; "paralíticos" incapazes da menor proeza mental; "surdos-mudos" que desconhecem o gestual; são acima de tudo e sem aspas, estúpidos, mais muito muito estúpidos, porque acreditam fazer desaparecer - e com as próprias mãos - o que crêem desprezível. A dimensão dessa ilusão de poder corresponde exatamente ao ridículo de quem o pressupõe. Impossível desencovar os "nazismos" porque eles são a atrofia, a falta, o vácuo humano, buraco vivo, mas vazio. Parece que estamos fadados a sua crônica reaparição, como gases maléficos no ar. Arqueologia autenticamente se faz dos tesouros guardados, desvelando das profundezas, por exemplo, uma sinagoga dos tempos passados, como se deu aqui em Recife, recentemente, e que foi sepulta em conseqüência da perseguição aos judeus na época dos holandeses.