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Meu sonho

Incrível como o tempo passa e os debates, críticas, repúdios aos atos de  vandalismo, de agressões descabidas, de violências aos direitos humanos,  ainda focam suas atenções no supérfluo das situações. Será que não está mais  do que provado que o homem, desde o tempo da caverna, está em constante  mutação, em eterna experiência cíclica, e que jamais será através da força  bruta que a consciência mais profunda do direito de liberdade e das opções humanas será reconhecido?

Claro que quando assistimos ou tomamos conhecimento de episódios tão cruéis quanto esses relatados no artigo da Regina Navarro Lins, levamos um susto imenso, sentimos a adrenalina se agitar violentamente. Somos feitos de carne  e osso e é naturalíssimo que nossas reações imediatas sejam de profunda revolta e desgosto ao constatar a crueldade que nos cerca. Mas creio que é essa mesmíssima adrenalina, quando não acalmada pela consciência mais sensível dos fatos, que nos coloca tão pouco úteis a esses e a tantos outros atos descabidos.

Fico impressionada que psicanalistas, sexólogos, e a mídia em geral, continuem não colaborando de forma realmente eficaz para que uma consciência maior seja levantada. Por exemplo, há quanto tempo estamos assistindo esse apedrejamento brutal em cima de homossexuais? Há quanto tempo recebemos notícias que mataram um gay, curraram uma lésbica, e aí aparece um grande psicanalista explicando, geralmente por arcaicas teorias freudianas, o porque desses fatos? Ok, o mundo está careca de saber dos mecanismos inconscientes que geram essas atrocidades, a televisão e o jornal nos entopem de teorias que explicam por a + b os motivos que desencadeiam tamanhas monstruosidades, mas isso está servindo para mudar os fatos? Esse caminho tem servido para que a violência seja verdadeiramente combatida, ou a cada dia recebemos mais e mais as sanguinolentas manchetes? E porque será que essas manchetes permanecem? E porque será que os consultórios estão cada vez mais lotados de gente que se sente perdida, julgando estar num mundo incurável e por demais duro de se viver?

Talvez porque nós todos estejamos sendo anestesiados pelo mesmo ódio, pelo mesmíssimo ódio que joga as pedras nos homossexuais, pela mesmíssima violência ignorante que distingue raças, pela idêntica raiva que destroi florestas e animais.

Acredito que quando nos deparamos com esses escândalos é mesmo necessário que coloquemos a boca no trombone. Que todos nós continuemos a gritar as tantas coisas que precisam ser alteradas à nossa volta para que o nosso planeta seja habitado com mais dignidade. Mas acredito também, que enquanto essa nossa revolta inicial não se acalmar, enquanto estivermos sendo conduzidos por uma mídia que se alimenta de sangue e de furos de reportagens sensacionalistas, enquanto estivermos apenas nos detendo e descarregando nossas críticas adrenalínicas (existe isso...hehehe) nos palanques das praças, estamos nos bastando no supérfluo, no eterno "toma lá dá cá" que não tem fim e que não tem trazido respostas positivas e duradouras.

Ainda aposto na consciência maior de cada um de nós, numa mídia menos  centrada em si, menos ávida de poder, de domínio de audiências, e mais sensível em suas atitudes que poderiam ser verdadeiramente úteis ao social. Ainda aposto nos psicanalistas, sexólogos e profissionais que lidam com o comportamento humano, menos preocupados em mostrar seus conhecimentos teóricos e mais sabedoria diante da alma humana, dos ciclos da evolução. Ainda aposto numa reflexão mais profunda de cada ser e no seu discernimento individual mais sutil diante das injustiças, dos atos descabidos e dos absurdos que nos cercam. Ainda aposto nas viradas dos séculos que nos mostram repetidamente que é preciso alterar as estratégias, que é necessária uma consciência mais inteligente, mais sensível e mais produtiva da humanidade. Ainda acredito que é urgente um desencadeamento significativo nos seres que altere as visões diante dos atos tão fora de propósitos que acontecem na face
da terra e passemos a lutar contra todos eles de uma maneira realmente eficaz.

Ainda acredito que tudo está certo, que nada acontece por acaso e que cada ato de horror que surge deveria servir para a mudança pessoal de cada um de nós, para uma busca mais profunda da compreensão íntima e que, ao subirmos nos palanques, ao empunharmos nossos megafones revoltados, passemos a ter lucidez suficiente para entender que jamais será com a adrenalina em ebulição, com a violência combatendo a violência, que passaremos a palavra mais útil e válida ao todo.

Particularmente sempre fui uma pessoa extremamente ativa diante das causas que me soavam injustas. Sempre tive um temperamento especialmente quente ao deparar com linhas políticas demagogas e ditatoriais. Berrei muito nas ruas, em passeatas, fui parar em delegacias enrolada na bandeira do Brasil, levei muita porrada, protegi subversivos considerados "perigosos", participei de variadíssimas reuniões dirigidas à maior igualdade social. Por muito e muito tempo vomitei revolta pelo preconceito dirigido aos homossexuais, aos judeus e aos tripudiados pelo horror do racismo. Abandonei meu país por pura raiva, por repúdio a um povo que elegeu para a presidência um garotinho tarado como o Collor, que evidentemente iria arrasar de vez com a nação. Não me arrependo de nenhum desses passos que dei, pelo contrário, respeito-os muito! Todos  estavam certos, todos precisavam acontecer para que uma consciência maior, a que tanto acredito hoje em dia, fosse despertada no meu interior e me fizesse olhar para os fatos de uma forma mais profunda, mais sutil e mais útil a mim, (primeiramente a mim, porque nada pode sair bem da gente se não estivermos inteiros em nós mesmos) e ao todo.

Chegou a hora em que cansei de ser conduzida pelo maremoto da ignorância revoltada e generalizada, chegou um tempo em que percebi claramente que eu estava sendo mais um carneirinho dominado pela mídia sensacionalista, e parei para me perguntar: "porra, será que essa minha luta está colaborando de verdade? Estou participando com eficácia diante dos fatos que me arrepiam, ou será que estou apenas alimentando meu egozinho zangado que precisa mostrar raiva, que precisa se declarar forte, corajoso e orgulhoso?" "Será que não existe uma compreensão íntima mais valiosa dentro de mim? O mundo é essa merda e eu vou continuar berrando pelo meu megafone particular que ele é essa merda, ou vou tentar evoluir e entender as manifestações humanas por outros ângulos? Será que não está na hora de alargar minha consciência de uma forma mais profunda, mais caçadora do entendimento cíclico da humanidade e adquirir uma visão mais dirigida às essências individuais de cada ser? Não será esse o momento de buscar compreender realmente porque as coisas acontecem dessa maneira e agir com mais utilidade?"

Preferi assim, acredito assim e só vejo possível minha contribuição ao todo quando ela parte desse meu lado mais íntimo, mais consciente, mais sutil ao me deparar com os episódios atrozes que tanto assustam. Escolho esse caminho porque creio estar nele a paz mais concreta para a humanidade. Parei de ser a guerreira cheia de ego que queria salvar o mundo sem cuidar do próprio mundo interior, mundo que se mantinha atordoado pelas análises supérfluas diante dos comportamentos humanos e que só se sentia ajudando se pertencesse aos grupos dos revoltados e fanáticos.

Evidente que continuo me sentindo milhares de vezes chocada com os acontecimentos absurdos que nos cercam, mas procuro não me deixar mais ser anestesiada e dominada pelo choque inicial. Não quero tocar só a camada de cima, quero os mergulhos que não me mantenham em julgamentos repentinos e que me levem a entendimentos mais significativos diante das atitudes que me parecem descabidas, mergulhos que me ajudem a agir com menos adrenalina e mais lucidez.

Milhares de vezes não consigo me manter nessa escolha que fiz, também me zango, me descabelo e entro na onda das críticas e repúdios repletos de revoltas. Ainda tenho muitíssimo a aprender, mas é sincero meu sentimento, minha consciência, de só acreditar num maior bem estar da humanidade quando todos nós colaborarmos de forma mais delicada e mais profunda.

Sonho, talvez utopicamente, com o dia que os poderosos meios de comunicação, e os que se dizem "profissionais das emoções", estiverem muito mais interessados no geral, no verdadeiro bem estar do ser humano, e se libertem da ganância particular, do poder e dos interesses pessoais.


 


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