Drops de Hortelã
Aquela pequena rua parecia conter o mundo inteiro. Tudo começava e se encerrava ali. Casas perfiladas, geminadas (umas com quintal), de cores variadas, feito carnaval, donde vinham distintas vozes e sabores. Ali naquela rua, pobre, rico, frango assado, ovo frito, tudo se misturava. Cachorro de um, gato de outro, papagaio desbocado era atração, divertimento, a gente parava para ouvir e ensinar mais besteira.
Sexta-feira era sagrado: todos se encontravam depois do jantar. Chovesse ou fizesse luar, tinha um lugar marcado onde a gente ia brincar de pera-uva- maçã.
Um dia acrescentaram a salada mista, novidade trazida por um primo distante. E a gente, feito artista, tinha que disfarçar, fazer nem-te-ligo quando, na verdade, ardia para beijar na boca aquele que tinha previamente escolhido — e torcia para acertar de olhos tapados. E vinha a ânsia, a emoção, o medo na hora da opção:
— Pera, uva, maçã ou salada mista?
A gente, na maior tensão, prendia o fôlego: podia ser que fosse o menino que se pretendia, mas também podia não.
Tum tum tum do coração, arrisco ou não arrisco?, era a dúvida cruel daqueles dias, o ser ou não ser que um tal de Shakespeare já previa antes de a gente ter nascido.
— Salada mista!, eu dizia, e a tortura dos minutos seguintes criava um mundo surreal todinho de gelatina.
Coração evaporado ficava pairando feito nuvem, pronto para virar chuva ou ser trovão.
Ai meu deus! Lá vinha o gordo da casa 16 na minha direção! O coração chovia.
Mas um dia, de repente, fez-se trovão.
As pernas fraquejaram, os olhos amoleceram enquanto via o Escolhido se aproximar em passo lento.
Paralisada, apenas fui deixando que se aproximasse com seu andar confiante e olhar que me prendia. (Ainda hoje eu poderia jurar que ele me sorria.)
Artista? Com ele vindo, não conseguia. Tudo denunciava a emoção daquela espera, a aflição, a agonia. Eu tremia cílios, lábios, pernas, mãos. Dentro de mim tambores que — estava certa — todo mundo ouvia.
Trovão trovão trovão. O coração, do céu, explodia.
Enfim perto. Ele eu.
Boca francamente aberta, ele sorria.
Um passo adiante, o hálito, fecho os olhos, sinto, deixo entrar em mim, antecipo o gosto.
Lábios, lábios. Os dele, maiores, roçam, depois cobrem os meus. Língua sub- reptícia se insinuando entre meus dentes.
Língua? Ai meu deus!
A minha, curiosa e independente, já me escapou da boca e agora brinca na outra, coração bate na ponta, ele sente, ri, provoca. Algazarra em volta. Alta. Todo mundo querendo brincar e a gente não parava nunca de beijar.
Gritos e assobios substituíram lentamente os meus tambores. Aos poucos fui abrindo os olhos moles, recuperando os sentidos. Ele diz no meu ouvido “você beija bem”. Sussurro “você também”, um passo atrás, ele me solta.
Antes de dar meia volta e partir, sopra o beijo de hortelã que nunca apaguei da memória.