Carta ao Professor RPires
Estimado Professor Beto,
O verão nova-iorquino passa mais rápido
do que a gente quer e deseja. Sei que você já sabe disso,
mas a gente sempre repete: o verão aqui é muito curto. O
sol é pouco, a luz é uma preciosidade. Não é
como o verão de Fortaleza ou o da Bahia que dura o ano inteiro -
que é eterno. Tampouco, o tempo aqui não é marcado
como as estações do Nordeste brasileiro que são só
três: o verão passado, este verão e o verão
do ano que vem. Certas - as quatro estações do ano - são
muito bem definidas e temos que aproveitá-las gota a gota com sofreguidão,
assim como se aproveita todos os momentos da vida.
Para mim, nascido e criado à beira do mar
tropical, os minutos do verão são sugados com gana. É
tempo de abandonar o corpo semi-nu sobre um gramado verde e bem tratado
ou sentar disciplinadamente em uma pedra ou um banco de jardim, ao ar livre,
e deixar o tempo correr em versos do Pessoa com seus desassossegos, meditações
do Kahlil com seus ensinamentos filosóficos, triturar palavras concretas
do Haroldo de Campos ou mesmo rabiscar intenções de rimas
de ritimos de estrofes de estrutras de respostas para muitas perguntas
feitas por tanta gente. Como deixar de passar horas caminhando de barraquinha
em barraquinha em um festival de comidas ao ar livre ou não se divertir
em quermesses do Tríduo de Santo Antônio em Little Italy com
direito a roda-gigante e roleta da sorte? Não acompanhar a procissão
em honra de Nossa Senhora de Guadalupe no cair da tarde, por outro lado,
é um pecado. Muitas vezes, apenas debruço-me na janela enquanto
bate o sol, somente para ver os passantes, ou os marinheiros a caminho
dos seus navios que apitam num sufoco rouco e desesperado chamando-os para
outros portos. Partem: navios, marinheiros, passageiros em busca de outros
destinos e outros sóis. Eu fico aqui, com o resto da saudade, me
dourando ao sol de Manhattan. E que dizer do passar um dia no zoológico
vendo girafas, gorilas, avestruzes, elefantes, onças, leões,
micos, antas, morcegos, cobras, aranhas, rinocerantes, macacos, zebras,
jacarés e outros animais presos em jaulas enquanto estamos soltos
usufruindo do direito de ir e vir para onde bem queremos e entendemos ao
nosso bel prazer? É difícil recusar um convite de um passeio
de barco pelo rio Hudson em tarde ensolarada e circundar a Estátua
da Liberdade; ficar boiando em águas mansas até escurecer
para apreciar os debuxos dos insolentes arranha-céus iluminados.
Mais difícil é dizer não aos amigos para um churrasco
numa casa de subúrbio ao sabor de uma taça de um tinto Corvo.
E como deixar de ver ao vivo, in concert, The Moody Blues, meus ídolos
dos anos 70 com quem tanto aprendi inglês ao som do rock clássico?
Tenho que acrescentar que o concerto foi à beira mar, à luz
da lua, com passe VIP e com direito à todos os ti-ti-tis dos bastidores.
Isto não é motivo bastante para abandonar a tecnologia, a
Internet, as mixagens literárias, os e-mails e as análises
de textos e deixar alguns amigos na saudade? Sei que eles choram a minha
ausência. Eu também choro a deles. Mas tem os outros amigos
que eu também quero um pedacinho de cada um, assim como eles querem
um pedacinho de mim. Que difícil e complicado é este mundo
com tantas repartições. Ah se pudéssemos ser múltiplos
em um só ou ter o dom da ubiqüidade! Valei-me, meu Santo Antônio!
Meu Deus, ensinai-me a ser ubiqüo como vós, feito a vossa imagem!
Recebi O Literário de maio há mais
de uma semana. Assim que chegou às minhas mãos o li todo
de imediato com carinho. Sei que você sempre me pede uma crítica
dos trabalhos ali publicados, um ponto de vista dos assuntos, uma palavra
sobre os colaboradores. Vou ser franco, mesmo correndo o risco de desapontá-lo:
sou péssimo crítico. Acho que toda idéia escrita já
é válida só pelo fato de estar escrita. Um pensamento
sem estar colocado no papel ou manifestado de alguma forma de comunicação
é quase nulo. Somente as boas intenções não
levam ninguém ao paraíso. As intenções, como
o pensar, têm que se concretizar em alguma forma. Leio tudo que está
escrito em qualquer lugar, não me importando se é bem ou
mal escrito. E o que é bom ou ruim em literatura ou em qualquer
arte? O que eu posso achar bom, alguém pode achar horrível.
E como eu mudo o meu ponto de vista com uma e outra obra, e até
mesmo nas coisas que faço, com o decorrer do tempo! Talvez isto
seja sinal de vida: nada é definitivo. Às vezes abomino as
histórias e os escritos de um autor. Passado tempo, lendo com mais
cuidado, descubro jóias e obras-primas no mesmo texto que reneguei
tempos atrás. Somente para ilustrar, recentemente estava selecionando
alguns poemas meus para colocar no site Usina de Letras; peguei o meu primeiro
livro publicado em 1990 - Retratos - e achei quase todos os poemas, com
raríssimas excessões, uma bosta sem nenhum valor e até
me senti culpado de ter tido a pretensão de publicar e chamar aquilo
de livro, ainda mais receber dinheiro com a venda do produto em noites
de autógrafos. Se com o meu próprio trabalho tenho este sentimento,
como posso me atrever a me pronunciar sobre as escritas de quem quer que
seja? Como posso dizer que fulano escreve bem, sicrano escreveu um belo
texto ou beltrano não entende nada de literatura ou de poesia? Com
esta deficiência congênita, sou suspeito de escrever um A que
seja de qualquer texto de outrem. Em não sabendo criticar, resta
dividir a minha experiência com o Sotero, a Aninha, o próprio
Pires, o Mota, a Helena, o Francisco Rocha, o Inácio Santos,
o Queiroz, o Feitosa, o Ângelo Rodrigues, o Carlos Augusto Santos,
o Avelar, o Aradi, o Carlos Leite e com todos que coloboram com o nosso
mui estimado O Literário: continuem escrevendo com devoção,
que já é uma cruz pesada como escreveu o grande Pasternak,
porque só o ato de se desnudar em palavras já é um
ato de coragem e de bravura.
Transmita meu carinho para todos.
Um grande abraço.