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ACONTECEU NO SÁBADO

Sábado passado bateram à minha porta. Distraída, entretida com o computador, continuei meus raciocínios, sem dar muita atenção.
TUM, TUM, TUM.... continuaram a bater... Levantei-me e fui ver quem era. Olhei pelo olho mágico e não havia nada por ali. Apesar da luz do hall estar acesa e ofuscar-me um pouco a vista, decidi voltar a cadeira e retomar meu último pensamento.
TUM, TUM, TUM.... agora muito mais forte e impaciente.
Afastei-me da mesa e, empurrando os teclados, com certa violência, dirigi-me novamente aquela que suscitava minha dúvida... Destranquei-a, prestes a soltar um palavrão.... Quem haveria de estar troçando comigo daquela maneira... aquela hora?
Quando abri, olhei de frente e... de novo!!!... Nada.... Não vi ninguém...
Mas... ao concentrar-me um pouco abaixo, mais ou menos à altura da cintura, algo estranho surpreendeu-me...uma pequena mãozinha... gorda.... e um pedaço de pulso vagavam soltos naquele espaço. Uma mão até bonitinha... cordial......
cheia de dedos bem feitos, também gordinhos... aguardava-me voando trêmula, sem dizer uma só palavra. Pensei, então... O que estaria fazendo por ali aquele membro... um tanto inquieto... cheio de mistério... perdido do corpo... no meio da madrugada??
Pedi para que ela entrasse e segui logo atrás, sentindo-me ridícula com aquela situação. Fomos indo, então, as duas , em direção a sala de estar, onde ela, mais do que depressa, acomodou-se na poltrona mais próxima, em frente ao sofá. Eu, por minha vez não sabia se oferecia uma água, uma coca... ou aguardava que ela se pronunciasse. Decidi sentar e relaxar. Alguma coisa, aquela mão intrusa, teria para me dizer. Ela... muito à vontade, cruzou os dedinhos robustos e, encostando-se bem rente a quina daquele móvel, balbuciou:
— Estou cansada...
— O que?? Perguntei, tentando escutá-la melhor...
— ESTOU CANSADA, DESOLADA... ela gritou... Apaixonei-me por uma orelha.
— Desatei a rir... Quá... Quá... Quá... Que burlesco!!!!!... Eu ali, conversando com uma mão... uma mão gorda... sem braço.e... me dizia estar com dor-de-cotovelo!!!!
— Não tem graça nenhuma, replicou num tom triste. É um caso muito sério.
— Ah!! Claro que é, disse eu, recompondo-me. Seríssimo... E o que tem feito a respeito?
— Quase nada. Quando ainda estava grudada aquele corpo em movimento, raras foram as vezes que tive a chance de me aproximar. Só quando aparecia um ou outro mosquito durante a noite.
— Sei, e..aí??
— E aí nada...Era tudo tão rápido, que mal podia me declarar. Na maioria das vezes levava o inseto desacordado... zonzo... como prêmio de consolação.
Tentava gritar lá de baixo: EU TE AMO!!! TE AMO COM LOUCURA! Mas ela virava-se para o outro lado com basófia, gabando-se... como se eu não estivesse a sua altura!!.... Eu então passei a fumar... desesperadamente... Tá vendo minhas unhas como estão amarelas?... Foi o cigarro... um atrás do outro. Depois foram os copos de uísque, de vodca... os assaltos a geladeira em busca de consolo. Por isso é que sou gorda...Você reparou??? Estou uns cinco quilos acima do peso de uma mão saudável, sem colesterol. Minha taxa de trigliceris também aumentou... Sinto-me inchada, sedentária...Tudo por causa de uma orelha maldita...Tentei de tudo... escrevi longas cartas, usei esmaltes de várias cores, tentando seduzi-la e... nada, não havia esperança para mim. Até que um dia surgiu a grande oportunidade.
Um punhado de cera acumulava-se, volumoso no seu interior e ela... finalmente  precisaria de mim. Era a minha grande chance. Uma oportunidade única e eu teria que me agarrar a ela.
Preparei-me com grande cerimônia. Lavei-me demoradamente em água corrente e um pouco de sabão. Pus o meu melhor anel e fui subindo em direção aquele ser adorável... cartilaginoso, cheio de cavernas ocultas, repletas de segredos sujos, pornográficos, depositados por uma boca da vida, que vez ou outra, aparecia por ali... Fechei-me, contraindo todos os dedos, deixando apenas  ereto aquele que serviria mais prontamente àquela função. Aproximei-me, olhando-a de frente... e... então... penetrei-a..... bem fundo... dando voltas e  mais voltas naquele orifício úmido... Sua imunda!!! dizia eu, procurando agradá-la!! Orelha ordinária!!... Caverna do diabo!!!
... E como ela parecia apática aos meu elogios, forcei-a, indo um pouco mais  pra dentro, apenas pretendendo me inteirar um pouco mais sobre seus pensamentos... Eis que... então... o que antes parecia elástico... rompeu-se...... aquele virgem tecido híbrido, o tímpano... havia  sido violado da maneira mais sórdida que ela jamais poderia imaginar...
Agora eu me afastava... ainda levava sob as unhas um punhado de cera quente,  prova inquestionável daquele meu crime hediondo. Revoltada... e agora surda  aos meus apelos de arrependimento... expulsou-me... para sempre daquele corpo e daquele nefasto túnel sem luz.
E aqui estou eu, batendo à sua porta... Nem tive tempo de pegar minha mala  com algumas luvas... De certo perecerei com o frio, serei, em breve, uma  morta mão gelada esquecida em meio as calçadas... de aspecto roxo, dedos petrificados.... E, portanto, se um dia alguém lhe procurar e vier perguntar por mim... pode ser que venha um pé, ou minha outra mão... diga-lhes que me fui... dessa para uma melhor, esperando vir, na próxima encarnação como um membro a altura do meu criador... um membro nobre, de respeito... um membro, de fato, superior.


 


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