Ave de arribação
De que me serve o que escrevo?
Meras penas onde deito,
servindo-me delas às mancheias.
Peso de pena onde deito e reflito
sobre a aorta de viver.[De que me serve o que escrevo?]
Serve-me para nada enquanto escrito,
mas como delito após lido.
Minhas letras são diários inertes,
esperando o dia da arribação.[De que me serve o que escrevo?]
São pesos que tiro dos bolsos
e atiro ao espelho sem ter razão.
São seqüelas do vício enquanto gozo,
travessuras de gênio folgazão.[De que me serve o que escrevo?]
Não me serve o prazer do degredo,
nem o delito falho de escrever e não ser.
Quero o prazer do santo ofício
de escrever e querer ser.[De que me serve o que escrevo?]
Nada me serve enquanto hipótese,
só flutuo na cheia com convicção.
Meu rosto tem quatro faces,
e eu sou só presa da miração.[De que me serve o que escrevo?]
Triste pergunta de alguém que sabe a nada,
perguntar o que se faz com o que se escreve!
Escreve-se por escrever-se, e mais nada.
Escrever-se é dar asas à miração.[De que me serve o que escrevo?]
Escrevo porque dou dentes à boca que me ri,
quero sentir o cheiro da maçã que não comi.
Escrevo porque lastimo a ausência do perdido,
porque quero revoar além de meu sentido.[De que me serve o que escrevo?]
Meu ato só é completo quando miro
o olhar que me sorri e determina.
Só assim eu compilo o ser que anima,
me animando a seguir a minha sina.[De que me serve o que escrevo?]
São verdades o que escrevo, e não minto.
Carrego em minha bolsa o absinto
de todas as noites não-dormidas.
O que escrevo eu carrego comigo
até o último confim de meus dias.