O filho da cigana
Vivo por aqui há muitos séculos ou milênios, nem
sei mais contar o tempo... Palmeio o mundo sem pensar muito em fronteiras.
Oficialmente e por conveniência tenho dupla cidadania - bahiano/nova-iorquino
(combinação boa, não é?... e o bahiano é
com H mesmo). Também o que se poderia esperar de um geminiano com
ascendência em touro, amante da lua e da vida? Gostaria de estar
em muitos lugares ao mesmo tempo. Ah se eu tivesse o dom da ubiqüidade!
Recorro mais uma vez com fé ao meu padroeiro Santo Antônio,
que se chamava Fernando antes de se tornar religioso, e tinha este dom.
No dia-a-dia sambo em cinco línguas para sobreviver e ganhar o vinho
nosso de cada dia (português/inglês/espanhol/francês/italiano).
Mas é no idioma Português que me sinto à vontade, como
que flutuando no útero materno.Minha mãe me contava uma história
interessante. Ela dizia que um dia estava comigo no colo na porta de casa
tomando um pouco de sol da manhã em Nazaré das Farinhas,
cidade histórica do Recôncavo bahiano onde nasci e passei
a minha infância. Andava já esquecida dos quefazeres domésticos
enquanto brincava comigo, quando apareceu uma cigana com um filho lindo
no colo pedindo um copo d'água. Ela me colocou na cestinha de vime
trançado e foi até a cozinha pegar o copo e a moringa que
ficava na janela do quintal para refrescar. Lembre-se que naquele tempo
não existiam esses tais luxos de geladeiras e máquinas de
fazer gelo. Era tudo ao natural mesmo: água de poço, moringa
de barro, banho de rio, fruta tirada do pé. Quando ela voltou do
fundo da casa viu que a cigana tinha ido embora, levando o filho dela e
me deixando na cestinha de vime. No momento ela achou muito natural:
uma criança pela outra. Depois é que veio a confusão
na cabeça dela, na minha e pro resto do mundo, porque eu não
sou eu, eu sou o filho da cigana deixado na cestinha de vime, mas, ao mesmo
tempo, eu sou o filho da minha mãe que a cigana levou.
A partir daí ela sempre teve o cuidado de trancar a porta com
tramelas com medo de eu sair pelo mundo procurando por mim mesmo. Quando
a gente viajava juntos de trem ou de vapor pela Bahia de Todos os Santos
— ônibus, carro e avião eram coisas de ricos naquele tempo
— eu estava sempre preso ao rabo de sua saia. Não adiantava muito,
porque aonde a gente chegava, em poucas horas eu já conhecia metade
do povo e a outra metade já me conhecia. Mesmo assim ela continuou
com o extremo cuidado de não me deixar solto. Quimeras! Anos depois,
numa outra manhã de janeiro tropical, ela se descuidou com a porta
e veio a fatalidade: cadê Fernando? Aí já foi muito
tarde, eu já tinha ganhado o mundo. Um quarto de século depois,
ela descansou para sempre ainda com a esperança de que eu ou o filho
da cigana, nem sei mesmo quem é quem a essa altura, voltasse
a brincar com ela na porta de uma cidade do interior em manhãs de
cálidos verões. Acho que dessa burundanga toda é que
vivo de cidade em cidade — Salvador, Rio de Janeiro, Washington, D.C. e
Nova Iorque — e andei por Portugal, Espanha, França, Suíça,
Itália, Holanda, Alemanha, Inglaterra, Grécia, Marrocos,
Argentina, Uruguai e Estados Unidos me procurando ou querendo saber para
onde a cigana me levou. Tem o resto do mundo ainda para procurar, coisa
à beça pra percorrer. Haja crônicas e contos para contar
essa história de vida. Falta-me tempo. O negócio é
usar a internet pra ver se facilita encontrar quem sou eu e onde estou.