DESCARTÁVEISSobre os DESCARTÁVEISApalpamos
pesamos
medimos
decidimos:
descartamos os feios
os murchos
os muito verdes
os que passaram
do ponto que sacia
a nossa fome.
Avaliamos
a data de validade
ou de fabricação
o odor do bouquet
o preço,
algumas vezes até
a composição
capaz de saciar
a nossa sede.
Consumimos
papel em toneladas
moda, podre midia,
fabricadas alegrias
e mil geringonças
eletrodomésticas
eletrônicas ou
de segurança
buscando felicidade
e sempre... descartáveis.
Com descartáveis criamos
pirâmides faraônicas
de lixo e doença
atulhando as cidades.E de repente descobrimos
que também nos tornamos
perfeitamente
des-car-tá-veis.
Eu estava na sala de espera
para consulta médica quando ele entrou. O primeiro acordar-me ocorreu
com o grito da mâe: "João (nome fictício)! Anda
devagar! Olha os pés das pessoas!" E meus olhos batem num
dos rostos mais lindos, num dos olhares mais cheios de luz que já
vi - o rosto de João. João - apenas um menino de 9 ou 10
anos, numa cadeira de rodas. Manejada com incrível habilidade.
Enquanto a mãe aguarda
a consulta, ele quer se divertir, vai para a sala de televisão.
Ouço então
a história, desgraçadamente tão banal. Aos quatro
anos, a vó tem de "dar uma saída" e João vai em seu
colo. De repente, balas perdidas. Em João. Já fez quatro
cirurgias, fará mais três. E a mãe conclui sem nenhum
drama, ante a pergunta de outra pessoa: "Não, o caso dele é
irreversível. Ele não sente nem nunca sentirá nada
da cintura para baixo, usa fraldas..."
João volta. Novamente
seu olhar me prende e fascina: uma mistura inconfundível de absoluta
tranquilidade, alegria e extrema vivacidade, naquele rosto a refletir estrelas.
Alma absolutamente viva, enquanto tantos "normais" a deixam morrer.
Impossível não
pensar então na condição humana, tão
ilógica à mente cartesiana, o termos
sido feitos do frágil barro da terra e do pó eterno de estrelas.
Mais ilógica ainda para esta cultura de consumo, competição
e mais valia, para a qual só há um valor básico:
a "utilidade", a "produtividade" com o objetivo de lucro. O valor
maior deixa de ser "quem é" para ser "o que pode produzir".
A ideologia dominante domina a muitos, muitos, muitos que passivamente,
sem perceber, deixam de ser para ter! E este ter inclui até "ter"
pessoas. Não é fácil a gente se rebelar contra ela.
Mas é preciso.
É esta cultura dominante
que quer nos tornar descartáveis. Para ela, João é
descartável. Para ela, ninguém é insubstituível,
já que o produto que espera de alguém pode ser produzido
por outro, de preferência ganhando menos. E pergunto: minha mana
Dedé foi substituída por alguém no meu coração,
no de seus filhos e amigos? Alguém poderá "substituir" a
poesia do Drummond? Que música, para mim, poderia "substituir"
a 6a. de Beethoven? ... O que é eterno não morre.
Pó de estrelas e
barro da terra. A alma eterna num corpo finito. João nunca
se livrará das fraldas, nunca andará, nunca saberá
o que é um orgasmo, para sempre é deficiente de corpo mas
jamais de alma. Não é descartável, ninguém
o é mesmo sem saber, mesmo sendo deficiente de alma . Porque o amor
do universo nos abraça. João transmite, confirma, irradia
esta verdade na luz de seu olhar.
Maju Costa