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A MARCHA DE JÚLIA

    Naquela manhã de 8 de março nos encontrávamos reunidas em uma pequena praça de nossa cidade, preparando-nos para mais uma marcha de mulheres. Enquanto meu olhar vagava absorto em meio ao burburinho de vozes animadas, avistei a poucos metros a figura alta e esguia de Júlia. Minha atenção fixou-se naquela mulher, que como eu, também estava ali para marchar. Bela morena, de pernas e curvas generosas, andar macio, fala doce e delicada, segurava com mãos firmes, um pequeno cartaz. Nossos olhares cruzaram-se atraídos provavelmente pelo mesmo pensamento. Ela sorriu um de seus vários risos, franco, aberto, de boca escancarada e dentes imaculadamente brancos e bem tratados. Acenei e imediatamente me lembrei de quando pela primeira vez nossos caminhos haviam se encontrado e da verdadeira revolução interior pela qual nós duas passamos a partir dali.
    Há cerca de dois anos atrás, li em nosso pequeno jornal, a notícia estarrecedora de um casal que fora internado às pressas no hospital, vítimas de graves queimaduras de 1º e 2º graus provocadas pelo ateamento de fogo ao corpo da jovem mulher pelo marido, enfurecido após mais uma de suas violentas crises de ciúme. À época, recordo-me que teci alguns comentários sobre o caso e continuei meu trabalho, que já não era pouco. Passado algum tempo, qual não foi a minha surpresa ao ser chamada à delegacia para atender a jovem queimada, que lá estava procurando o S.O.S. Mulher para orientá-la acerca de seus direitos em um processo de separação litigiosa. Esperei encontrar uma jovem medrosa e naturalmente fragilizada. E lá estava ela, querendo justiça, sem medo, mas à deriva dos acontecimentos que sucediam-se sem que ela compreendesse nada.
    Peguei o caso e a primeira providência foi a de saber a quantas andava o processo crime, que muito provavelmente o marido estaria sofrendo pela prática de tentativa de homicídio. Deus meu... o caso havia sido arquivado! Por absoluta falta de provas, o inquérito concluiu por simples acidente. Berrei, xinguei, protestei, mas de nada adiantou, não haviam testemunhas, não haviam provas e eu nem ao menos possuía algo que instruísse um pedido de separação litigiosa. Entrei em juízo assim mesmo, com a cara, a coragem e os fatos que por ela foram narrados. Não tínhamos sequer uma testemunha que atestasse o quanto aquele homem era violento e passional. A nosso favor, somente o relato de Júlia e a sensibilidade de um Juiz afinado com as causas da mulher. Seis meses depois, estavam separados judicialmente, ela e seu algoz. Mas a minha frustração permaneceu, até aquela manhã de março, quando a vi novamente. Linda, forte e disposta, apesar das cicatrizes que lhe cobriam a face, colo e pescoço, descobertos por um generoso decote. Desviei meus olhos e concentrei-me dessa vez nas mulheres que lá estavam. Todas nós representávamos um segmento da comunidade e marcharíamos naquela manhã numa atitude de protesto contra a violência de gênero. Júlia representava sua história, expondo a todos como uma bofetada, todas as suas marcas.
    Nunca mais a vi depois desse dia. Soube que se mudou para outra Cidade, numa última tentativa de fugir do homem que quase lhe tirou a vida e ainda a persegue.

Mariza Lourenço


 


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