A Dor é MeninaArrancaste-me de casa ainda criança,
sem nem ao menos deixar que minha boneca,
único brinquedo,
acompanhasse meus passos de menina.
Em minha pobre mala de papelão encardido,
apenas os trapos de um enxoval ordinário,
que jogaste fora, a pretexto
de dar-me outros mimos.
Mas nada de ti eu queria,
muito pouco ouvia do teu riso mundano,
meu pensamento, este sim, era livre,
e voava travesso até minha boneca,
esquecida em um canto do meu catre de palha.
Quanta dor eu senti,
saudade e raiva daquela mulher
que me trocara a peso de nada,
e me fizera chorar debruçada sobre
lençóis bonitos, do mais fino linho.
Minha mãe, nunca mais a vi.
Na vida, coube-me a tarefa
de, a cada lua, parir um filho seu,
e foram tantos, quantos aqueles
que enterrei.
Em cada cova, um anjo pequenino
que amorosamente eu fizera acompanhar
do brinquedo preferido.
Hoje nos despedimos,
você em seu leito de morte,
eu, com suas mãos entre as minhas.
Homem da minha vida,
marido das minhas dores,
não lhe guardo rancor.
Uma ponta de mágoa, talvez,
perdida em um sítio miserável,
no corpo recheado de macela
de uma boneca de pano.Mariza Lourenço