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“tanto mar”

sabe o que eu acho? que devíamos viver à beira-mar. e que só peixe, só marisco e onda, só maresia invadindo nossa casa e o pensamento longe – onde a onda – onde o náufrago, onde a estrela-do-mar alçaria seus tentáculos. pois a praia é como o leito que sonhávamos. e digo que também a orla e a areia sem demora nos abrigariam. inda a sereia na escuna que passava ao largo, inda a duna escalada, a espuma salgando as pontas expectantes dos pés e as palmas frias espalmadas: um acorde marítimo é tudo o que um dia sonhamos.

e nadei sim. no mistério das rebentações de um azul profundo. é que na rebentação o mar se atonteia, olhamos de esguelha, o mar ambiciona uma prece salgada. fomos todos visitar a praia. e na lonjura fomos expostos de vez ao titã, o afã de percorrermos calmos, pé ante pé, um oceano inteiro. donde surgiram a ave gaivota e a lustrosa lagosta. donde saiu a água-viva bruxa, toda nua, toda tua, amor. e por fim donde saímos nós, vivos e salgados.

o mar é uma entidade verde-azulada que nos exaspera. pois nunca conseguimos olhar o mar. olhamos uma onda, duas, três. olhamos uma rocha, um horizonte, uma ilha ou mais. mas o mar? quem viu o mar? ah, esse olho humano e parvo nunca logrou abarcar um mar.

levando uma lembrança marítima para o interior do continente. levamos conosco o farfalhar e levamos conosco a ginga que a onda confere ao corpo quando ele se encontra imerso. (e depois gingamos num sonho, inconscientes). levas convosco esse pedaço litorâneo incendiado pelas doze horas que passaste ao mar, amor, as tuas horas litorâneas chegaram ao fim. (deixar o
mar, para um mortal, pode ser uma experiência angustiosa).

sobre o mar quase tudo já foi dito. o que não disseram, porém, é que o mar possui um olho secreto. um olho de escândalo e todo carcomido pelos peixes. pergunte a um pescador, pergunte a qualquer pescador sobre o olho gigante que o mar esconde debaixo das ondas. e não pensemos, ingênuos, que o mar vive em eterna cegueira. o mar enxerga, e em algum ponto remoto o olho marítimo, imenso, se move com abissal lentidão de centauro.

assim sendo eu atravesso um mar em tua busca. coleciono as conchas com as quais vou moldar um corpo eterno que nos una, corpo de concha, corpo feito da substância marinha que nos ponha espertos em correntes, atentos feito a serpente marinha que percorre o fundo. e estacaremos brancos sob a cor da praia, estátuas  - os olhos serenos e a boca esverdeada de alga - lograremos ser o próprio mar, imensos, ancestrais.

tanto mar, é tanto mar que eu guardo! avança um cais, avança um barco. tanto mar é o que se espraia, lava essa toada, tanto mar é o que me acalma, dourar meus flancos ao mar, tanto mar, tanto mar. essa cantiga marinheira não tem volta. pois uma vez que se entrega ao mar, uma vez marinho, sempre marinho. unta meu corpo com sal, eu suplico, as têmporas, os membranas que eu adquiri no mar são todas minhas, todas tuas. riso de baleia. ordeno que o mar nos apavore. já tarda a tua onda sobre o meu intento, traz logo o teu ungüento que é pra eu ao menos me fartar de mar, tanto mar.

Ygor Raduy


 


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