desandança
caminhava pela via enfeitiçada e folha e flor na calçada,
ele subia branco a avenida aberta, ele subia. foi quando dois de seus olhos,
que eram raros, avistaram (gota na lapela) um diamante solto, a claridade
morta, a cidadela parda, ele avistava a noite. cada passada, cada estar
alada a primavera, a rua gasta pela hora e tom e tom de cinza sobre a hera
que apenas naquele instante habitou o muro. e era tão gota e gota
de uma antiga chuva que caíra, era assim como a névoa que
subia e embaçava o que se via – e o que se via era assentado nas
valas, nas caçambas, na ala deserta de um pavilhão que se
abria, naquela coisa fria, desatada que a noite nos oferece.
como o instante pode durar mais que o tempo, como era gélido
o tempo, ele rastreava um milagre escondido atrás do tempo e o milagre
se esquivava, brando, fatigado. a gota fina derradeira que caía
quando um raio iridescente se aninhava no horizonte, um novo onde, a nova
sorte de poesia que riscava um firmamento-astro, jamais houve tamanha ousadia
que incandescesse mais, além da noite.
e para além do céu escuro incandescia a vida.
a vida esquiva, pela meia hora que passava, a vida esguia. ontem mesmo
era verão e vinha maresia visitar a face. vinha pois a benfazeja
fome, a rosa incendiada, a formação do talhe e do entalhe
que cobria a hora. mas nada fora sequer ensaiado. a cara lavrada na rua,
uma vez era um caminho, a cara em desatino erguida, fabricada às
pressas, em desatino ungida, mal elaborada, a cara aparecida em nevoeiro,
cara de um sonho visitada. e era perto, tão perto! demorava em esquinas,
na ladeira ascendente fluía como aluvião. e raptava num átimo
qualquer esse sentido arisco que nos atormenta. depois uma rampa serviu
de estada vaga onde ele queimou um, dois cigarros. o mato rasurava esquemas,
a lua nunca havia aparecido num céu. ainda assim um vagabundo atormentou
o que se pretendeu silêncio e foi silêncio estilhaçado.
pois pela faixa que divide a rua, pela mão que lhe cabia, ele continuava.
mas tão laica a rua! tão descabida em si mesma, maculada, tão leiga aquela rua desandada! e nem a polícia fora testemunha do desenrolar da rua, era avenida, era alameda, era viela surda em enigma. donde surgiram três gatos. e todos buscaram, naquela hora esmaecida, um pouco de calor. e ele, o gato-quatro, também buscou – naquela hora entardecida – saciar o ingrato de uma fome indefinida e instalada no peito. paciência, ele pensava. mas ganhou um pouco da vida felina. e com pouco ele se contentou, decidiu tentar erradicar a lágrima que surgira bandida no canto de um olho direito. paciência.ela escorria inadimplente na maçã do rosto. a lágrima é livre. ela foi encontrar mais tarde o chão da rua onde se abrigou por fim entre uma ou outra saliência triste e virou água da rua, parte integrante do líquido que recobre a rua quando chove, enfim.
Ygor Raduy