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o documento noturno

                         "A noite era uma possibilidade excepcional."

                                                 C. Lispector

pois esse documento aberto pode dizer o que noite cala. o documento ainda não escrito contém todas as formas pelas quais a noite fala. ele representa toda palavra não dita. pois esse é o documento definitivo. calar seria o erro. dizer o que mistério esconde também pode ser fatal para um novato. no bar da parte antiga do centro os bêbados quase não falam: eles tentam. pois a palavra na boca bêbada é espinhosa edifícil.

pois esse documento aberto pode expôr tudo o que queríamos ter ouvido ontem. ou amanhã será um dia sem palavras. posso resolver não escrever esse documento. mas se o fizer corro o risco de não poder mais usar a palavra. e aí seria o meu fim. a noite aberta foi a mãe do documento aberto. olhei para o topo iluminado dos prédios e olhei para o céu escuro. o documento se desenrolou todo na minha frente.

é preciso entender que o interior iluminado de lâmpadas não traduz a noite inteira. a verdade é que a noite é intraduzível. mas não importa. pois se ela cai depois do dia e se ela escurece o meu quarto então eu tenho que falar sobre ela. eu vi a noite preta amontoada nos cantos e amarrotada no céu de outono. ela me animou a dizer uns versos. foi ela até que acendeu meu cigarro. pois a noite sem cigarro é menos noite.

se bem que esse documento aberto não é nada mais que um reflexo. sim, puro reflexo da noite erma, extenuada. ontem passei por uma travessa da noite alta. a mulher do canto do muro sabia como a maconha deve ser bem presa nos dedos antes de ser enrolada. o baseado bem feito. dentro da noite é que ele é bem aceso, bem fumado. pois se fumamos à tarde somos devorados. a tarde é real. a noite sabe ser outra coisa. ela que é suave e vaidosa. ela que se espelha toda em mim quando eu a olho. pois esse documento aberto não pretende ser outra coisa senão o reflexo noturno das curvas da mulher chapada. ela que era para mim a própria noite encarnada nas praças, nas travessas.

e se bem que a noite às vezes me escapa. penso nos homens do bar e nas poucas falas, no vinho derramado no balcão e nos acessos do passador de pó. sei do cheiro do vinagre que paira no bar. e sei do monte empoeirado de rolhas e da caixa registradora velha, dos crimes cometidos na noite e dos fios brancos do bigode do Pedro, o dono do lugar. sei das moças, dos pobres moços. sei até do gosto do vinho ralo. e tudo entra para o documento. porém o que me falta é respirar o ar azedo. ficar parado no chão de cera vermelha e pedir fósforos ao freguês mais torto. pois cada noite é uma outra noite. eu precisava estar lá - pois preciso contar-lhes tudo.

a feitura desse documento aberto está exposta para todos os olhos. pois ela é a própria tessitura da noite. a abertura total e absoluta do documento é que é a sua liberdade. os veios pelos quais a noite segue estão inscritos nas frases e nos parágrafos e o andamento das linhas é atado ao prosseguimento da noite, contínuo e indiferente. aliás a indiferença da noite é um dos seus traços mais fortes. a noite acontece sem que possamos começar a compreendê-la. quando voltamos os olhos ela já é toda noite noite, noite sem brechas possíveis ou vãos que poderíamos encontrar para enganá-la.

por mais que nos irritemos (ou não) com o tic tac suspenso das horas da noite, ele prossegue. e a noite, uma maçã fria postada sobre o mobiliário, detêm uma vaga espécie de lembrança nossa, um diário noturno de horas, um calendário escuro onde não se distinguem direito os dias. e as noites são apenas um traço. o rastro que elas deixaram em mim é pura armadilha. um perigo dulcíssimo que eu caço e reprovo com dois olhos lassos, febris. quem diria?

sim pois a noite tem disso, de lamber os meus, teus pés descalços para depois nos largar em vielas - compartimento estreito de onde eu só saio agarrado. ao teu corpo imenso e ao suco do teu abraço : que me cala, que me põe astuto, que me atravessa de um lado a outro lado. e vá dizer que a noite tem disso também de corpo que foi imantado e agora exala o odor ofegante no qual fomos imersos. ai que vai dizer que a noite. ela que nos desafiou a ter uma cara. sou todo espalmado nas rodovias, nos becos que
ela arma, luxuosa.

agora que a noite tesa resolveu velar meus versos resolvi entreabrir o mistério dela. pois ela merece que a olhemos. e quando a olhamos, nua e calada, somos levados a um frêmito irresistível de possuí-la inteira. nenhum pedaço irriquieto da noite na minha boca tensa. nenhum dos teus cacos alojado na carne iridescente da noite. possuir a noite em trapos é macular o seu segredo inteiro, desvelar o que pairava anônimo dentro dos canais do tempo. e agora que a noite tesa resolveu velar meu verso vou abrí-la de alto a baixo. o corpo aberto da noite deve ser belo. estejamos atentos quando chegarmos ao olho da noite, ao centro, ao fundo caudaloso do seu plexo.

a noite arranca o que restar da minha carne. e eu já escrevi sobre o corpo. agora vou escrever sobre o corpo envolto. no escuro e no silêncio escuro. eu juro que a noite me pegou no colo, tratou de acostumar meus olhos à sua coisa preta. a coisa da noite é o que há de mais tesudo a respeito dela. vou dizer-lhes que é apenas um sinal que ela nos envia. e esse texto tresloucado é fruto da delícia e do estrago que o tal sinal engendrou na minha vida. tendão avariado. acorde dedilhado às pressas. essa noite apressada do meu outro verso.

já experimentou acordar no quase noite? o coração se contrai inteiro. pois se acordamos e já somos alvejados pela penumbra rala é que estamos num estado estranho. pelo menos eu, quando acordo na hora do limbo, sinto uma dor espessa que nasce no ventre e sobe inundando cada pedaço. é que o dia se passou inteiro enquanto dormíamos. é que dentro de nós se formou um dia escurecido. é que o dia escurecido dentro de nós é um filho bastardo da noite. o enteado híbrido que ela concebe e que já nasce marcado. já experimentou fabricar uma noite atenta?

dirá que a noite tem tantas faces quantas forem as faces do mistério. e mergulhará no vão aberto, no vórtice, na vida crua descarnada, no planalto deserto onde perdeste o teu outro lado. o teu lado amputado que tanto procuras. dirá que perder o teu amor na noite dói muito mais fundo. e que ela te segue, essa bandida noite, pelos cantos, pelas vielas. era ela quando te desesperaste e era ela quando caíste. milagre. a ferida funda costurada. o vazio do vão que deixaste. a parte mais triste da madrugada.

a noite corrente, a noite em que eu sumo e desapareço pela porta aberta. a noite em que o interior da casa contém o meu corpo, eu saio para a rua agora. tão só que nem lembro mais de mim e dessa prosa lenta, entristecida. agora. temo então que a noite me engula. ela me arranha, ela alicia o meu olho. a noite ilícita me pegou de súbito. tortura. essa é dor que acontece à noite e eu quero falar sobre ela. ela que me lava e me fascina. ela que me põe atônito. eu subo os degraus dessa noite certo de que a vida pulsa. a noite corrente, essa que atravessamos.

vou investigar na entranha da noite para descobrir se eu mesmo faço parte dela. ou será que sou alheio à noite? se eu morrer a noite continua, ela me abandona em cruzamentos do tráfego. se eu morrer a noite me esquece. ela me larga em andaimes, decide deixar o meu corpo em qualquer andar do prédio. já sei que por dentro ela se assemelha a um relógio. mas não marca o tempo. é a engrenagem da noite que me faz lembrar do relógio. dizer que a noite caminha também não é válido já que ela é toda espalhada nas praças: a noite não vai, ela se derrama e eu transbordo com ela para dentro de um fosso secreto. viagem esguia como a que se passou dentro da noite.

possuir um corpo à noite é ter em mãos o indizível. mesmo que seja um outrocorpo, um corpo exausto ou um corpo qualquer. clarificado. em leitos porque depois do amor eles dormem. em poucos lençóis. porque depois do ato os olhos ficam frouxos. perigoso esgueirar-se. perder-se nas conexões que ela fabrica. mas existe o desejo. mas o desejo quando é noite torna-se um desejo denso. perfeito. agora que o manto da noite caiu sobre o telhado, amor. agora que a treva nos alcança, tira esse teu casaco. aliás a noite esconde seu beijo ofegante. e tenho que dizer isso sem ser piegas. porque depois do amor eles dormem. porque logo que ela envolve o quarto o laço está bem atado. noite alta, laço esticado. noite fervendo, corpo excitado: agora dorme.

eu ia dizer que a noite é uma ruína agora. não uma decrépita mas uma bela ruína esfuziante. estranho? sim. eu ia dizer que o largo da ordem é um dos melhores lugares para se estar à noite. é logo naquelas ruínas que eu penso. são francisco. a ruína da noite agora está armada sobre o piso de ervas. está armada sobre a parte partida da pedra. quando você passar pelo largo da ordem à noite pode ficar bem atento. nada aconselhável. mas o perigo é que nos agita. o frêmito. eu ia dizer que a noite arruinada pode ser encontrada no centro velho. eu ia dizer que eu amo Curitiba à noite. mas isso todo mundo já sabe.

a fanfarra da noite é o seu próprio mapa mundi estilhaçado. coisa ébria de quem não sabe onde meteu a noite. se foi nos bolsos ou atrás dos retratos. a noite aberta. a metade da noite é a sua própria leva arruinada de lágrimas. a parte que eu adoro. noite santa, vem me pega no colo, vai. miragem. livra de mim esse caco do vidro partido. finalmente. o teu nome escolhido para ficar sobre o meu. costurado. a euforia da noite rude, a noite em que o pedaço branco de droga adentrou o teu corpo e os teus olhos saltaram. noite truncada como um coito interrompido e nunca mais consumado. o mapa mundi estilhaçado da noite.

por dentro da noite suspensa, suspeita. livro de fotos. a dona da avenida à noite é a puta. ela tem tanto amor que a noite até se admira. junto dela estão os cães que vez ou outra passam. mas é a dama que espera na esquina que resolveu ser a noite. ela que se travestiu com aquela coisa densa pegajosa que a noite nos oferece. os grandes saltos, lábios, cigarrilha dourada e a pinta azulada na maçã do rosto. feita com pura minúcia de quem decidiu tomar a noite toda para si.
 
 

eta noite caudalosa e tenra. eta intervenção que eu te opero, te espero parado no portal marmóreo. eta noite fervilhante e tesa, mirante de onde eu observo a tua sombra de réptil. orgulhosa. essa noite temerária, eta! cristalizar-se no centro da penumbra e trocar nuvem por bruma, contorno por traço indistinto. eta rosa desfolhada que morreu à noite. lampréia enlouquecida que acabamos de criar. eta noite caudalosa e tenra. remédio do meu calcanhar, peça noturna essa que se abriu agora, desfolhar cuidadoso de pétala. familiarizar-se com os desígnios que a noite lança e teimar em obedecê-los. se é que somos selvagens. eta noite daninha! avoada. amarra esse nome ao meu nome e raspa o que sobrou da janta, teu manjar de ossos. furiosa como um vento sul, ela me deixa assassinado no pátio, esquartejado no pórtico, estilhaçado no globo luminoso do meu olho. o lustre que derrubamos, o teto veio abaixo e com ele veio a noite que era preta. eta noite preta que me fascinou, eu morri no teu refúgio e renasci no teu castelo. eta, eta.

                                     da noite fui ressurrecto.

e o documento prossegue. simples como a noite próxima. ele se move para todos os lados, ele sabe tirar o melhor de mim. preciso rasurar esse documento senão ele fica vazio. é o próprio rasgo na tessitura da noite que me deu essa idéia. pois um documento em branco soaria falso. ele precisa de um ferimento. pra combinar comigo e com essa ferida que a noite exibe no dorso. o nosso caso finado. o nosso tempo findo. e eu, que achei que era pra sempre acabei desconcertado. exausto. como um vento seco essa memória, um vento estéril. estou descalço no ocaso e caminho pelo chão macio da casa. eu aproveito o vento intruso. esse que apareceu depois da tua ausência e me animou a viver mais.

"E, da Meia Noite perdura a presença, na visão de uma câmara do tempo, cujo misterioso mobiliário detêm um vago frêmito de pensamento, luminosa fenda do retorno de suas ondas e de seu primeiro espraiar-se (...) "

                                                                            Stéphane Mallarmé
 
 

mas eu não quero falar da aurora. e nem o ocaso me interessa agora. o que importa para o documento é o recheio denso da noite. recheio este que compreende as primeiras horas, depois o meio da noite e finalmente a madrugada alta. é certo que todas as partes se interligam. mas deixe-me ver. o começo da noite aguda guarda algo de fruta fresca em seu interior. é a parte mais leve e ao mesmo tempo a mais estranha pois acabamos de ser envolvidos : ainda resta a memória recente do dia e por isso ainda pairamos indecisos, hesitamos em adentrar a noite toda, aceitá-la inteira. isso logo passa. pois o que se aproxima é a hora do meio da noite. e aí já estamos completamente imersos. é o ponto a partir do qual não existe retorno. na meia noite acontecem grandes revelações. somos levados a crer que a meia noite é hora viva e hora morta, hora espelhada nos rostos e no olho incandescente dos cisnes, hora lapidada ao avesso e cravejada de opalas, hora da euforia de astros e da falange desperta que nos aguarda em estradas, pantanais. hora em que os meus faróis se movem na tua direção e a minha direção se confunde com a tua, já tão antiga. somos levados a especular sobre a natureza contraditória dessa hora. a natureza lânguida. um vago frêmito de pensamento, disse Mallarmé, é tudo o que poderemos captar de sua essência.

já a madrugada alta é completamente outra coisa. fastidiosa, inculta e celerada. também chamada de famigerada hora maldita. quem sabe aproveitar a noite alta acaba conhecendo a noite por inteiro. no começo ela é um mistério, pois nela repousamos calmos. depois, quando estancamos atentos dentro do seu transcorrer e seguimos acordados, aí é que podemos sentir na pele e no lábio horrorizado o que ela tem a nos dizer. família de cactos. seu esposo acaba de ser encontrado no quarto. seu cachorro foi atropelado. lembra daquela noite quando surgíamos? pois é, a água benta dessa madrugada onde fomos mergulhados agora é tingida com sangue. mas ela não precisa ser assim sangrenta. pode ser uma leve evanescência. ou então de uma doçura insuspeita. talvez a noite alta nos observe. hoje eu resolvi ficar acordado, fitar a luz fria do quarto, desfiar meu estoque de versos para que o silêncio os carregue. essa leva impaciente de ratos carcomeu a noite aflita. respingou algo ali, querida. ai, uma colher ou duas? tanto faz. a noite, essa não se importa muito. ela nos lança seu olho de soslaio e segue sem nenhuma compaixão. paciência. é que devemos nos arregaçar quando ela resolve entrar. se é que as ratazanas nos amam. a noite elas amam que eu sei. e uma loucura santa que me desce quando eu resolvo saquear a noite. livre pra degustar aquela parte mais dentro que se mantém exposta nos becos, nos jardins sem uma alma, nos museus trancafiados e nos templos. fina façanha. um ar de fenestra que permanece aberta a noite inteira. sim, para que ela possa entrar. sim, venha a mim a noite parda. venha.

Ygor Raduy


 


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