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a Curitiba doida.

não quis deixar Curitiba naquela hora. não quis que soubessem que ele era apenas um visitante, só teria Curitiba mais um pouco, logo a cidade rebrilharia sozinha sem ele, as calçadas, o Largo da Ordem abrindo aqui e ali uma nova esperança em alameda e alameda velha por onde ele subia. quando nas seis horas da tarde o frio baixava lentamente sobre a rua, quando a hora da partida se achegava, um desespero terno se infiltrava no seu olho, no seu jeito de olhar Curitiba à noite, ele não admitia por um só momento que a cidade continuasse sem ele, que o charme de Curitiba persistisse mesmo sem o seu olho atento envolvendo cada passagem do tempo em esquinas e sotaque do moço sentado à direita. queria meter a cidade no bolso, como devia ser bom ser solto em Curitiba sem volta, estar em cada boteco ou em cada parque onde se falam línguas estrangeiras pois apesar de faltarem lixeiras em Curitiba, a cidade é conhecida como capital ecológica, tem muitos parques e atrai visitantes de todo o planeta, blá, blá, blá. o que importava era que no centro velho anoiteciam as pessoas e os copos se preenchiam de uma cerveja clara, sem dilemas. e na trança de um cabelo ruivo, num brilho antigo da nossa senhora da luz dos pinhais de cada pedra que compõe a passarela que é a rua e onde todos os homens caminham, aí que se encontrava o maior tesouro de Curitiba. que ele sorveu com vontade, a capa da avenida se tornou tão fina, Curitiba se abriu cuidadosa para envolvê-lo, a paisagem envolvia a noite, todos seguiam  na noitinha que se anunciava com cheiro de banho recém tomado, todos seguiram e se admiraram quando Curitiba se tornou tão fria que tiveram fechar os casacos, os namorados se apressaram em abraçar as parceiras e esquentá-las, uma mulher bebeu do seu vinho espesso e disse uma palavra nova e cheia de ternura. ele ouviu e pensou em se instalar em Curitiba assim que houvessem meios, assim que a cidade finalmente o abrigasse para sempre, teria de haver o tempo em que Curitiba lançaria audaciosa um convite, aparecia a oportunidade, ele então responderia a ela sorrindo sim, querida, sou teu, vou ficar agora permanentemente no teu seio. porém, enquanto esse tempo não vinha, ele era apenas um forasteiro cheio de amor pela cidade. e mesmo a Curitiba feia ele conseguia amar com um amor que se saía do coração e ia desconstruindo a rua – garotos passavam – ele ia como em nuvens alvejando os habitantes, a cidade era toda envolta numa aura, a vida prosseguia numa esquina branca como só ali seria possível. um mapa da cidade recortado no peito, na parede do quarto, onde existiu uma Curitiba linda, onde a beleza resolveu construir uma cidade e mais tarde uma aperto por não poder estar curitibano inteiro, com vontade de ligar num orelhão da rua e apenas escutar o que se passa, uma paixão desinteressada, era essa a paixão primal que ele guardava, uma que não desprezava nem a tampa da garrafa bebida num bar de teatro e nem o maço vazio de cigarros.

na tarde em Curitiba ele fabricava um verso santo. na tarde que seguia ele alinhava o seu olhar ao olhar da cidade. pois na vida do passeio público um pelicano bateu três vezes com o bico longo sobre a grade. e todos que passavam perceberam – no canto de metal da gralha – todos que passaram perceberam uma Curitiba povoada, a cidade sonhada se elevando atrás do vento, alçando seu arranha-céus, seus precipícios – perceberam que em Curitiba uma força emergia das praças e num redemoinho, quando a revoada das pombas se lançava, um turbilhão de gente, alegria, vozes que soavam e nunca eram ouvidas ou na rua incandescente das flores quando o homem que não tinha pernas sacou de sua flauta e as notas se desprendiam – ele suava – uma sonata que escorria das vitrines e cercava os pés de quem ousava caminhar na XV àquela hora. no vão dos viadutos a energia cinza latejava, o vento frígido lanhando os pavimentos cimentados da tarde, ele revirava Curitiba ao avesso e num frêmito se deparava com fachadas das construções antigas com as janelas lacradas por ripas, a vida na cidade atravessara mais de dois séculos, morte e vida se alternavam e um caldo grosso escandaloso surgindo, as crianças chapinhavam na fonte – para onde quer que se olhasse Curitiba se adensava num giro, um pesadelo preto que se dissolvia tão logo aquela brisa fria soprava. com alívio, os contornos das coisas voltavam, um delírio veloz na tarde arrefecida, as mãos pendiam sem socorro, os olhos eram laminados e refletiam com coragem a cidade ensimesmada onde os passantes raramente deixam escapar algum olhar.

mas no anoitecer da grande Curitiba ele viveu uma vida desejada há muito. a fugacidade dos passeios, as bocas coladas num beco. e caminhou rente aos muros, no mar de faróis que se acercava, de meia luz em meia luz flanando sobre a sombra da noitinha aberta. de dentro das casas, os perfis escurecidos das senhoras desfilavam, alguém dizia um eu te amo sobre a dureza das pedras que compõe as praças, alguém preparava uma dose – Curitiba se insinuando noturna de reuniões em sacadas, de aviões tracejados nas nuvens, no mofo das páginas – ele engoliu a saliva e estremeceu observando os mastros da igreja matriz perfurando um céu que ia de cinza a cinzento escuro. e logo negro, como se esperava, Curitiba anoitecera e a noite trouxera por fim mais um augúrio, tudo era susto na noite da sexta, ele desfilava a esmo pelo centro e uma flor anoitecida nos canteiros, um gole de café que ele sorvera, na avenida elétrica ele percorreu mais de um quilômetro e parava espionando os ares, os umbrais semicerrados, os lugares que só agora eram abertos, bares que recebiam só agora a primeira lufada daquele vento escuro que era o mesmo vento que ele recebia nas maçãs do rosto.

certo de que a noite da cidade o acolheria, ele organizou um pensamento e decidiu escolher um lugar onde pudesse sentar, olhar para a cidade e para as pessoas da cidade. pois quando a hora é chegada, os vestidos se ajustam ao corpo, escolhe-se o melhor colar e os olhos cintilam numa efervescência. a Curitiba rica sai da toca, o brilho dos ambientes aquecidos, as falas aveludadas das moças, a fina paciência dos moços a esperar que ela retorne do banheiro. Curitiba nessa hora é toda quatro paredes ou então salões de burburinho desatado, taças que se encontram de leve, goles de leve emborcados, interiores de couro dos carros, decotes, saliências.

já na Curitiba rota uma mulher sangrava e um enxame de notícia anunciava a queda da Curitiba florida, arborizada, as passagens sombrias de bairro a bairro cada vez mais afastado, uma Curitiba que ele desconhecia mas nunca ignorara. apenas a sua condição infeliz de visitante impedia um mergulho mais profundo nessa Curitiba, cara a cara com a face louca da cidade.

e com garra se enfiou numa espelunca tonta. fabricou dentro de si uma Curitiba audaciosa que não conhecia sossego, que não dava trégua, enveredou como um raio por mais meia dúzia de bares, as passantes eram brancas, as mesas dispostas nos cantos sob a luz temperada das velas, as mesas melhores eram as que permitiam uma vista da cidade, as janelas abertas em plena noite pareciam nunca ter sido cerradas. já alto e encapotado, como a noite fria demandava, atravessou a galeria dos tipos, na boemia do largo onde o relógio de flores marcava um horário equivocado, na Curitiba santa destilada onde duas mulheres sorviam de uma mesma bebida azulada e conversavam alto e usavam plumas sem pudor – faiscavam bêbadas – e desfiavam um véu de apaixonadas que ele acompanhou de ponta a ponta mas sem ouvir as palavras e sim o gesto delicado de levar a taça aos lábios, o gesticular satisfeito, as duas habitaram a Curitiba incendiada naquela justíssima hora em que os olhos negros de uma delas, olhos demorados, cintilaram na penumbra como duas pedras cintilam – a noite corajosa seguia seu curso – os olhos arriscaram um brilho nativo e as duas mulheres, perfeitamente encaixadas em seu papel de mulheres noturnas que usam plumas, soltas sobre os vãos que a noite cria, saíram caminhando lindas porta afora, os braços dados como irmãs, sumiram no folião da noite, sumiram da sua vista e deixaram para trás um rastro lácteo de astro.

       numa nervura da Curitiba adormecida, uma vista noturna da cidade se formando em ladeiras que desembocam em ladeiras vazias de avenidas longas entalhadas no asfalto pardo no silêncio, na confusão dos muros, Curitiba deserta é um antiquário de teia em teia fabricado, a lua ocre trepidando sobre o esquema indiferente das ruas, as linhas tortas de trincheiras e cacos coloridos nos canais, na madrugada desmaiada uma fortaleza erguida no centro da cidade respirava quando um olho de ave noturna se abria e na revolução do interior dos templos, na rotação do mecanismo que subjazia sobre o calçamento, Curitiba vivia uma vida secreta – as estátuas paradas – tudo se organizava de acordo com o farto andamento das horas. num lapso de descompasso, a cidade era varada de dores, sirenes, uma ambulância riscava num raio o negrume da rua e Curitiba piscava tensa de olhos vidrados, enfermeiras sob o fundo branco das salas de espera, um abismo se
multiplicava e finalmente Curitiba fervia em chamadas telefônicas, vidro partido, buzinas contínuas, fagulhas de aço, pontas de metal que se alojavam, falas longas e repetitivas no escritórios da polícia, radiografias do tráfego, ácido transgênico saltando dos tubos, no escuro Curitiba tateava o instrumento certo e a cidade reaparecia refletida sobre a água. na noite alta um perfume de escadarias descia, algo muito antigo reiterava sua presença em travessas. na noite longa, nos portões do cemitério, o passado da cidade ressurgia muito fino, muito preciso em calças de linho tropeiro, em galinheiros sepultados pela pedra, o rio Belém se avolumava e transbordava sua água barrenta pelo branco das calçadas, nas margens soníferas dois galos ressurgidos, vestidos de antigas matronas, chapéus, caixas velhas, as fotos da Curitiba desaparecida, cabeças brancas sob a luz de sonho, as confeitarias lotadas de moças, cavalos que novamente relincharam e encheram o ar da cidade de ventura.

       quando Curitiba amanheceu uma geleira navegava sobre a praça Tiradentes, ele acordou com os olhos brancos e o corpo transmutado em corpo lento no ar frio das seis e meia, a hora curitibana soava, nos quartéis os moços em fila, uma música de sono ainda insistia, os acordes claros na manhã esmaecida de um sábado, ele saiu pra ver a força da rua rediviva, a rua cinza espreguiçada e respirar o cheiro acre da cidade. pois em Curitiba nessa hora um vento soprava, a geleira marejava calma sobre a catedral – as meninas saem pro colégio e passo a passo sobre a pedra, o pezinho minúsculo, se juntavam como borboletas num burburinho macio que se animava a medida que o sol despontava e logo uma algazarra louca, os bares servindo pingado, o farelo de pão no piso de cera, na banca de jornal um homem fumava e esquecia da hora e outro homem deixava que o bom engraxate lhe lustrasse os sapatos enquanto lia, a cidade inundada pela luz sincera, o céu de Curitiba, a enchente que naquela hora oprimia a rua, eram sapatos, documentos, greves, ajuntamentos de passantes, uma cartomante que pairou sozinha num banco da praça esperando um cliente, orgulhosa de seu ofício, toda ornada, toda paciente. naquela hora também as fontes foram ligadas e um jorro de água fria umedeceu Curitiba – a geleira suava – no ar claro esvoaçavam mil partículas, na beleza frenética das manhãs do tempo, no trabalho dos quadris, o sangue correu rápido em canais, uma centelha de alegria, um apressar-se, um sobressalto, um salto em direção à Curitiba ávida do sábado, uma hora solar no coração da cidade que ele sorveu e arrancou a camiseta num impulso de sentir o ar da cidade na pele. a XV de Novembro efervescia num sonho, ele sonhava e a nudez do seu corpo produzia um sentimento árduo, naquela hora iluminada, a nudez do seu corpo fabricava um sentimento novo. na artéria mestra um corpo branco se movia ao lado de outros corpos móveis. os desenhos da calçada se animavam, as flores suspensas sobre os vasos, as vitrines se partiam, revelavam Curitiba dissecada, ele andava na nudez pura do lugar sonhado. os esquemas da cidade se tornaram fáceis, como o caminhar fosse um jogo de prazer nas galerias, os olhares colidiam sem sucesso e os instantes produziam frutos entranhados na paisagem. Curitiba lisa escalpelada agora aparecia numa vertigem de cores – a geleira derretia lenta – Curitiba numa clausura de nuvens se abateu sobre ele num estrondo – as alamedas descaíam em grandes construções de vidro, a cidade costurada sobre si mesma revelou torrentes de vida bruta que fremiam mesmo no silêncio das ruas altas. e somente neste instante ele tocou uma Curitiba sua, quando a surpresa de caminhar despido pela avenida fabricou uma nova consciência de cidade, as nascentes urbanas emergiam atrás do cenário, no ar rarefeito ele passou de visitante a morador impermanente. pois no amor das doze horas calmas sobre a rua, as doze horas fáceis sobre a loucura da rua, a cidade revestiu-se ternura e mesmo as gafieiras e mesmo as favelas brancas rebrilharam certas de que ele voltaria, Curitiba lhe lançava um olho quente, Curitiba repartida em Curitiba minha e Curitiba tua, essa cidade suja, essa cidade larga, esse tesão emaranhado na cidade ainda mata um cidadão, ainda ele largava um coração dilacerado em pleno meio-dia, ele levava Curitiba na memória, na hora certa ele voltava, Curitiba na cabeça feito uma doença que ele nunca se importou em curar.

mas assim que a hora tardia veio ele partia, ele largava as alamedas com medo que elas se partissem, deixava pra trás o largo e as garotas do largo que iam, vinham e ele as deixava para trás com cachecóis no vento frio, perfume do frio e cigarrinhos de cravo entre os lábios. pois assim que a hora tardia veio, a despedida aconteceu entre uma e duas horas de uma tarde que fremia, a despedida se passou quando ele mal esperava, Curitiba ia ficando cega, ele próprio ia ficando cego e uma cegueira lenta, não quero mais ir, me deixa aqui com febre, Curitiba desapareceu entre os pinhais, as varandas se torceram, os roseirais naquela hora lançaram a sua fala louca aos quatro ventos, todas as matronas gargalharam enquanto ele sumia, ele era apenas um pontinho desmaiado na distância. Curitiba também ria com seu riso estilhaçado. o que ficou foi a última visão dos pilares, das vidraças e um último riso saliente que o atingiu na pélvis, subiu pelas costas e se espalhou numa dormência pelo corpo todo. e quando ele acordou Curitiba era apenas um rastro afrouxado, uma cidade longe - e que nunca existiu de verdade.

Ygor Raduy


 


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