"para uma dança do mistério"
um homem para sempre aquela tarde. como se um fogo o atentasse ele saltava de um extremo a outro da sala com astúcia e sob o olhar boquiaberto dos presentes, tecia um balé desesperado sobre o chão de tacos. como uma última dança louca antes da morte, num acesso de vida repentina no centro pasmo da cidade ele bailava. e continua bailando ante os meus olhos acesos. pois num exagero exato ele rodopiava, num transe sem camisa ao som de jazz, instante após instante com volúpia ele deixou em mim uma lembrança viva. e eram braços desvairados sobre a tarde, lúcidos, insensatos.
como uma aranha ácida e elegante e doce em sua majestade. soberbo. hilariante. como se aquela dança fosse um desafio final à apatia, um balé iconoclasta às cinco horas atentas de uma tarde para um público muito seleto. e sem qualquer pudor – eu me espantava – sem qualquer pudor ele descia ao chão para depois depois subir em salto triplo e como um doido acompanhando a música, abria os braços e cantarolava Ella Fitzgerald frenético enquanto já ia ensaiando outro salto magnânimo em direção ao improvável. a sala ficou imensa. a sala virou um palco improvisado. e ele sorria selvagem, seu riso intensificado pelo movimento, ele esteve nu dentro da casa como alguém que sabe que cometeu um ato intocado.
os presentes todos se olhavam, maravilhados, constrangidos. as pessoas
observavam o homem que dançava, as pessoas sentadas em seus sofás
muito confortáveis assistiam ao homem que dançava e faziam
comentários. mas ele estava sozinho. aqueles que o viram aquela
tarde testemunharam a beleza terrível de um homem que dança
sozinho com seu corpo. e acendiam cigarros e tentavam entender o que levava
aquele homem a desafiar o próprio aperto do cômodo e explodir
em união com a música. um deles, na esperança de aquela
hora ficasse eternizada numa imagem, fotografou a dança. assim talvez
poderia tentar entendê-lo mais tarde, olhando a foto. mas o segredo
daquele homem era incompreensível para os que sentados, olhavam.
e talvez nem ele se desse conta do impulso que o levava a esvoaçar
e continuar dando rasantes sem ficar exausto, como se uma energia pura
o alimentasse, girando e fibrilando e tremeluzindo até um ponto
máximo, o auge do jazz e da dança,
como num gozo ou numa catarse maravilhosa para chegar enfim, depois
do êxtase, àquele estado sereno que nos lembra a expressão
de um santo ou de um mártir.
pois foi um acontecimento. ao fim do espetáculo, a cidade brilhava
da sacada, ele continuava a sua vida sem uma palavra. todos voltavam a
conversar, pediam uma pizza, acendiam-se novos cigarros, tudo continuava
como antes. mas algo se desenvolvera na tarde que acabava. algo nascera
e se infiltrara. algo muito sorrateiro, cada olhar e cada beijo pareciam
outros.num rasgo sutil sobre a superfície de tudo, aquele homem
revelara a vida. pois é preciso que alguém nos mostre a vida
e então acordamos maravilhados como se acabássemos de nascer
e por um instante entendemos, mesmo que
depois tudo se embace novamente. mesmo que depois retornemos mudos
ao habitual, um instante singular e precioso de entendimento nos é
dado. e precisamos ter a coragem de aceitar esse instante em tudo o que
ele seja, por mais que esse instante doa, aceitar o tamanho de nossa incompreensão
e de nossa miséria. mas é que às vezes um instante
salva.
como um corte na pele branca do peito revela o coração descompassado, aquele homem revelou a incandescência oculta sobre a poeira do tempo. num instante muito delicado — e talvez nem ele se desse conta – ele personificava toda a beleza trágica que consiste em estar vivo e ter um corpo com o qual se pode dançar. e na dança ele encarnava, na extravagância de um salto, gozo e angústia, o seu rosto se modificava, o ápice e a decadência de um vôo lírico e solitário sobre a capa fina da cidade, na luz exata de um apartamento naquela hora exata quando começa a anoitecer e todos acham que a vida se acalma.
pois aquele homem revolvia a vida. e mesmo no anoitecer, as pessoas com fome, as pessoas sentadas, as pessoas pareciam esperar que alguém como ele viesse e as sacudisse, as alertasse de que a vida explode, a vida está equilibrada sobre um cordão muito fino – veja como eu danço sobre ele – a vida que era simplesmente um desejo, um desejo vasto que se abria – uma lâmpada era acesa – era como um anjo anunciando que o instante de viver já passou e agora vem outro, outro e mais outro – veja como se vive, veja como é fácil.
porém ele somente dançava. sem uma palavra clara que as pessoas pudessem identificar e aproveitar para suas vidas. elas somente pressentiam e adivinhavam a razão dele estar com muita desenvoltura, dançando no mistério. talvez ele tivesse bebido um pouco. talvez aquela fosse a sua maneira de sentir a vida mais profundamente, de entrar em contato direto com a existência e sua fragilidade. pois não era exatamente uma dança feliz, uma dança alegre. era uma dança em que a aspereza e a maciez se encontravam e se fundiam e se amalgamavam para formar um todo onde não existia mais a dualidade: onde tudo “era”.
a imagem da pessoa dançando sobre o tempo está em mim. foi decalcada em mim e a vejo hoje com nitidez. e me sinto satisfeito e privilegiado de ter feito parte da experiência que é própria experiência de testemunhar a vida e sua beleza terrível. no entanto não sei o que o homem guardou em si daquele dia. pois talvez nem ele, o executor, tenha alguma idéia da significação e da importância do que ele mesmo criou ou desvendou. é que criamos a todo momento. e nem sempre sabemos por onde anda nossa criatura, seguimos brancos e intocados como se jamais houvéssemos criado ou desvendado algo. e seria realmente assim se algumas vezes, raras vezes, a criatura não resolvesse voltar ao seu criador e gritar-lhe: estou aqui, nasci! e aí ele volta os olhos pra ela e a reconhece. ou então não a reconhece, sente que ela é uma estranha, a rejeita. em todo caso não há como fugir: ela é sua. pois um criador não se desliga da sua criatura por sua própria vontade. vide Frankstein e comprove que algumas vezes a criatura age terrivelmente sobre o criador.
mas não é esse o caso. pois o que se realizou naquela tarde foi como uma luz lançando-se sobre a confusão do mundo. mesmo que resistíssemos e lutássemos e nos negássemos a perceber a verdade do acontecimento. que era cheio de surpresa e era largo, os gestos eram largos, o sorriso que ele exibia era largo e abarcava o mundo. o mundo que de repente tornava-se um mundo renovado, trêmulo. como uma onda que vem estilhaçar o espelho tranqüilo da água, ele era a novidade em pessoa, conhecíamos naquele instante um mundo modificado pela avidez e pelo furor desenfreado. pois foi o homem que dissolveu a segurança da tarde e nos lançou em direção a um universo cheio de possibilidade que antes nem sequer suspeitávamos.
ele enfim rompia o acordo tácito e mudo de comedimento que existia
entre as pessoas. uma pessoa sentada espera através de um contrato
misterioso que a outra pessoa ao seu lado não cometa um ato qualquer
de loucura. todos esperam que nos comportemos como animais civilizados.
existe uma quietude, falas pausadas, ninguém quer ultrapassar um
certo limite estabelecido. ninguém quer ir depressa demais até
o limiar do corpo e da mente que se alcançado, nos põe cara
a cara com o que somos mais profundamente, com o fato de que somos provisórios,
com o fato de que somos frágeis, com o fato
de que não há nem mais um segundo a perder. pois a experiência
de enxergar o outro rompendo esse limiar pode ser mais desafiadora do que
se fôssemos nós mesmos a rompê-lo. porque do lado de
fora podemos perceber toda a gravidade do ato, do lado de fora podemos
sentir todo o impacto.
e o homem rompia o limiar com tal desenvoltura que era como se não soubesse o que realizava. e provavelmente ele não sabia. ou talvez ele já houvesse rompido o limiar há muito tempo e nem se dava conta de que os outros ainda vivessem lá dentro. ou ainda pode ser que o homem resolvera num instante romper o limiar para logo depois retornar para dentro dele. talvez estivesse apenas testando seus limites, talvez estivesse bêbado, talvez estivesse feliz demais ou desesperado demais e apenas aflorava. o fato é que uma barreira fora ultrapassada.
e algo desabrochara irreversivelmente na sala.
Ygor Raduy