O Beijo na Escadaria
a vida vale um grão. velo pela vida dentro de uma câmara e quando me distraio ela se ergue e devora um pedaço do meu corpo. a vida vale um vão incendiado. sigo pelas esferas da vida como segue um cão. estou perdido e me renovo a cada respiração e a cada respiração eu me mato. eu sou a aura. e as flores são feitas para o sacrifício. permita-me apresentar-lhe uma palavra nova. um destino terrível de profeta, as cavidades dos olhos bem abertas, eu sou o destempero e a calma. como quando há mil anos uma canção foi entoada nos escuro. e havia pedras. posso ver os morcegos pendurados, a boca que se abre mansa numa caverna. a vida vale um não e me sufoca. mas quero a vida e brinco de perdê-la. numa saraivada branca de perséfones. na rua desabitada onde a tua vida se enlaçou na minha e num instante voávamos sobre as plataformas, sobre os aquedutos. remo ao teu encontro num murmúrio. eu sou a dor maravilhada e a alma. não espero a morte. mas a vida total se escancarando no momento de morrer. esforço-me todo à procura do teu vulto, esgarço meu corpo em direção ao teu. a vida vale um quarto abandonado em subúrbio. eu quero uma gelatina e quero a última pétala saqueada da vida. a vida esguia. a vida vale a ousadia que fizemos, o beijo da escadaria, o salto que não planejamos e uma curva mal traçada que nos leva de encontro ao cerne. cerne do quê? não sei. hoje estive à procura da vida nos sebos e nos antiquários. a vida se esgueirava nas cisternas. uma vida que não era eterna e se espalmava no meu peito acelerado de amor, amor, amor tão denso que me sufocava. mas velo pela vida nos andaimes. sou um ovo e me repito a cada frase. não tenho leitores. sou um susto e me visto com raiva e silêncio. sou a rosa roxa da espera. pois meu corpo sobreposto ao teu não tem pudor. o gozo é a terra úmida forcejando e finalmente brotando espavorido em alarde. tento me firmar no mundo. tento adequar meu nome ao tempo. mas a rua descendente me exaspera. tenho palavras demais. não as digo. não as assassino. pela contra-mão, pela treva, pela via e pela pútrida quimera destroçada. eu sou o caminho e a força. permita-me escrever uma palavra doce nas tuas asas de açúcar. não quero versos curtos. quero a coisa densa se espraiando. e velo pela vida nas estepes. os cruzamentos me traçam. sou um inseto. largo atrás de mim um leve zumbido de abelha ou de libélula fosca. a vida é apressada e não aguarda eu me vestir. mas não tenho pressa. porém vivo de urgência. o salto e o precipício. a vida vale um grão. apenas o início de tudo.
Ygor Raduy