CIDADES BRASILEIRAS
 
AREIA BRANCA, A INFÂNCIA

A cidade adormecida
no coração do poeta,
entre pregões matinais,
subitamente desperta.

Por trás da Serra Vermelha,
nasce a manhã, nas levadas,
na solidão das salinas,
nas águas envenenadas.

Maçaricos alçam vôo,
nas várzeas de pirrixiu.
Pescadores solitários
Pescam o silêncio do rio.

Num bosque de mata-pasto,
Atrás de Amaro Besouro,
Desabrocha o fumo-bom,
Em finos cálices de ouro.

Calafates calafetam
velhos barcos irreais.
Moinhos movem os ventos
nas tardes do nunca mais.

O sol se pondo na barra,
entre mangues e canoas,
põe rebrilhos de vidrilhos
nas marolas das gamboas.
A noite cai. Cães vadios
ladram na rua, à distância.
Deslizam sombras esquivas
nas esquinas da lembrança.

Todos os que se mudaram
para o outro lado da vida
e dormem, no cemitério
da cidade adormecida.

Vêm a mim, me cumprimentam,
me comovo ao recebê-los.
Baila uma fina poeira,
em torno de seus cabelos.

Converso com Pum-na-Guerra,
Fumo-bom e Baranhaca.
Abraço Maria-mole,
Ciço Cabelo-de-vaca.

Passo no Canal do Mangue,
vou à Fuzarca, à Favela.
Na Rua da Frente há moças
Debruçadas nas janelas.

D. Adelina me argüi
na tabuada, o ABC.
Começa tudo de novo,
pela estrada do aprender.

Ouço as valsas da Água-doce,
nas tardes de antigamente.
Entre bois e pastoris,
sou menino novamente.

As ruas se embandeiraram,
há lanternas pelas portas,
São João acorda, entre o riso
de pessoas que estão mortas.

Os pés do poeta vão
nessas ruas do sem-fim.
O tempo não conta mais,
partiu-se, dentro de mim.

Nesse burgo de lembranças,
guardado pela memória,
minha vida se inicia,
recomeça minha história.

                                Deífilo Gurgel

Do livro: "A Poesia Norte-Rio-Grandense no Século XX"  - FUNCART/Imago, org. Assis Brasil, 1998, RJ.

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