O POÇO DA PANELA
Num remanso bucólico e sombrio
Onde atenua a marcha o grande rio,
À sombra de recurvas ingazeiras,
Batem roupa, cantando as lavadeiras.
Trago ainda nos olhos: é bem ela,
A Paisagem do Poço da Panela:
A igreja, a casa grande, as gameleiras
E ao fundo o pátio verde e as ribanceiras
que afagam, num lúbrico arrepio,
O corpo adolescente e alvo rio.
Do outro lado da margem — capinzais
Da olaria e do sítio de Morais.
Morais Pilôto — um português antigo,
Compadre de meu Pai, seu grande amigo,
A quem seguia como um cão de fila
Através da política intranqüila.
Homens, éramos dois. Completamente
Diferentes em tudo. Eu, manso e doente,
Meu irmão insubmisso e insuportável
Como um potrinho de expressão saudável
Cometendo distúrbios... Meu irmão
Levava surras como um boi ladrão.
Mas vingava-se em mim. O quanto eu tinha
Era nas suas mãos como farinha.
Animais de madeira, leões, camelos,
Até a minha coleção de selos
Ele queimou um dia por vingança.
Aprendi a sofrer muito criança.
Se alguém me dava cousas de presente,
Dele era tudo, inevitavelmente.
Se havia luta entre nós dois, a sorte
Decidia por ele: era o mais forte.
E eu, sem revolta e sem melancolia,
Sendo filho de ricos, mal vivia.
Uma vez, (como dói essa lembrança!)
De um bando de guris da vizinhança,
Meu irmão, num rincão da estrebaria,
Organizou a sua "Companhia",
Fez um bumba-meu-boi surpreendente,
distribuiu os papéis a toda gente:
O "boi", o "Seu Coitinho", a "Ema", a "Caipora".
Entraram todos... Eu fiquei de fora.
Nessa noite, meu Pai, vendo-me em pranto,
Pôs a troupe na rua por encanto
E reduziu a múltiplas fogueiras,
"Boi","cavalo marinho" e "cantadeiras".
De então recrudesceu a fúria.
Não havia pedido nem lamúria
De minha Mãe, que comovesse a fera.
Era o diabo. Eu nem sei mesmo o que ele era.
Certa noite pesada de tormenta,
Minha Mãe, numa voz cansada e lenta,
Lia-me a história do Patinho torto.
Eu, com meus dedos tremendo, ouvia absorto,
Quando assomou à porta o turbulento.
Entrou que parecia um pé-de-vento.
Parou. Sorria. Já conhecia a história,
Disse (tenho bem claro na memória):
Que ele era um cisne pra viver num horto
E eu não passava de um patinho torto.
Minha Mãe pôs em mim seus olhos mansos,
Tranquilos como as águas dos remansos,
E tantas vezes me beijou no rosto,
Numa expressão tão triste e tão singela,
Que desejei sofrer novo desgosto
Só pra ter novas carícias dela.
A despeito das rixas e perigos,
Crescemos ambos como bons amigos,
Vendo o tempo apagar, rude e apressado,
Esse doce perfume do passado,
Que nos infiltra uma saudade louca.
E inda temos um beijo em nossa boca,
Um beijo de respeito e de recato
Para beijar chorando o seu retrato.
Velhos, sem ter ninguém que nos iluda,
Pensamos nela e nos seus bons destinos.
Se viva fosse, inda éramos meninos,
Que para o olhar das mães que nunca muda,
Os filhos continuam pequeninos...
Olegário Mariano