O  índio

1

Entra e vê como alguém está à espreita,
como olha de esguelha através da floresta,
como procura em vão apagar os sinais
desses touros vermelhos do cotidiano.

Entra e vê como se cumprirão as escrituras
de tudo isso que se fez verbo e protocolo
e que se vai amontoando nos sambaquis
como relíquias dos filhos de tupã.

Tudo isso que te faz verbo e protocolo
e que te vai roendo e te fazendo sonoro:
harpa de vento pendurada na mangueira,
santo de pau oco num altar barroco.

2

Entra e vê os mil pequenos entraves
e depois escuta, põe teu ouvido no chão:
e a música da minha flauta transversa
ou da minha flauta mambi -
      dessas de índio brasileiro,
           de cócoras,
distraindo a solidão das borboletas.
 

É a música da minha flauta transversa
que talvez te atravesse e te acorde
no meio do oceano:
    ela vai demarcar a tua área,
vai erguer as paredes de tua ocasa,
reunir teus peixes, bichos, carrapatos,
curar a tua maleita, tua doença de branco
e te fazer sonhar com a voz de uma iara
esquecida numa curva de rio
ou num grotão de cerrado.

Mas vai também te vestir de penas,
como se fosses mesmo o inesperado chefe
de uma tribo perdida na linguagem.


3

Sou mesmo um índio: boto meu ouvido
no chão e fico assim a tarde inteira,
quem sabe se até meio distraindo
na conversa de amor de uma estrangeira.

Sou capaz de escutar o vôo do inseto
e a canção da semente germinando;
meu poder de captar o longiperto
me transforma em tupã,  de vez em quando.

E eu vejo tudo: o mais pequeno galho
quebrado numa trilha - um rasto, brecha,
um aceno de luz, qualquer atalho,
vulto entre folhas, deslizar de flecha.

Meto sempre o nariz, descobrindo
a forma, a cor, o som, algum sinal
do que ficou sem cheiro, algum resíduo
do que ficou sem tempo, como um saldo.

Pelas pontas dos dedos é que enxergo
o outro lado das coisas - o sem-nível,
a imagem veludosa com seu verbo,
seu corte de navalha no invisível.

Na minha língua o rubro da papoula
ainda sabe o mel e ainda canta:
tenho um gosto de sol no céu da boca,
tenho um travo de beijo na garganta.

Então sou mesmo um índio: deito o ouvido
na curva de teu ventre e à tarde inteira
quem sabe se eu não ando comovindo
um coração batendo à brasileira.

                                            Gilberto Mendonça Teles
                                                                   (Lisboa, julho de 1985)

Do livro: Hora aberta (Poemas reunidos), José Olympio/INL - 1986, RJ/DF

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