SER TÃO CAMÕES

Um rio se levanta na planície
goiana e se detém calamitoso
para lutar comigo e revelar-me
o mistério mais fundo do sertão.

Primeiro, fez sumir dos meus anzóis
os beliscões dos peixes e sereias.
Fez crescer a zoada dos mosquitos
e a sensação de vento nos cabelos.

E me armou no mais íntimo do ser
a máquina do medo, me ocultando
o amoroso espetáculo dos botos
e a legenda da lua nos remansos.

Depois, foi-me atirando as suas ondas,
foi-me arrastando pela correnteza
e me foi perseguindo nas vazantes,
como o rio de Homero ou como aquele

oculto e grande rio a que os indíginas
chamaram de Araguaia, pronunciando
o dilaeto das aves que povoam
os longos descampados.
                                          Talvez sonhe
el-rei com seus dois rios de altas fontes.
Talvez ouça o silêncio das iaras
dormindo nos peraus. E talvez chore
toda aquela apagada e vil tristeza
de quem penetra a solidão noturna
do canto da jaó, sem perceber
o discurso do rio que me grita
do barranco:
                       "Não passarás, Saci,
destes vedados términos. Goiás!
eis o sinal que vibrará
canoro
e belicoso, abrindo na tua alma
vastidões e limites.
                                Terás sempre
o sal da terra e a luminosa sombra
que te guia e divide, e te faz duplo,
real e transparente, mas concreto
nas tuas peripécias.
                                 Nada valem
tua cabeça mandinga, o aroma
de teu cachimbo e o mágico rubor
de tua carapuça. Nada vale
a tua perna fálica, pulando
nos cerrados.
                        Há vozes que te agridem
e dedos levantados te apontando
nas porteiras, nas grotas, na garupa
das éguas sem cabeça, como há sempre
uma tocaia, um canivete, um susto,
uma bala perdida que resvala
em tuas costas.
                          Mas ainda tens
de nutrir tua vida nas imagens
da terra. Ainda queres como nunca
alegres campos, verdes arvoredos
claras e frescas águas de cristal
que bebes em Camões.
                                            Todo o teu ser
tão cheio de lirismo e de epopéias
tenta escapar-se em vão aos refrigérios
dos fundões de Goiás."

                                         Assim me disse
e, queixoso, voltou ao leito antigo,
deixando-me perplexo e mudo, como
se junto de um penedo, outro penedo!

Minha pe(r)na se foi enrijecendo,
foi-se tornando longa feito um veio,
uma pepita de ouro, o estratagema
de uma forma visual que vai possuindo

as entranhas do mapa e divulgando
a beleza ideal destas fantásticas
e vãs façanhas, velhas, mas tão puras,
tão cheias de si mesmas, tão ousadas

como o rio de lendas que se cala-
mitoso na linguagem.

                                Gilberto Mendonça Teles

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