Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos, (***)
Pedindo conselho.

Não é lá fora  o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança.

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis,
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

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(***) N. E.: poema escrito em forma de carta a Drummond, datada de 29 de setembro de 1943, João Cabral expõe seus sentimentos em relação ao serviço burocrático. Este poema, que não trazia título, ficou inédito por 53 anos, até ser publicado, tendo sido escrito manuscritamente, em papel timbrado do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), órgão da Presidência da República em que o poeta pernambucano trabalhava.

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