SONETO 339 (RECICLADO)

Vivemos chafurdando em podriqueira.
Os ares se saturam de impureza.
As fezes empesteiam a represa.
Água já sai fedendo da torneira.

Nas carnes o sabor travado beira
a decomposição. À mesma mesa,
tresanda uma fruteira e mantém presa
a má respiração de quem a cheira.

Socorro! Vou morrer contaminado!
Nas vascas da agonia já estertoro,
somente prelibando meu bocado...

Que nada! O conservante, o vento, o cloro
disfarça a podridão do mau estado...
Vomito, volto, voto, e já melhoro.



SONETO 490 (CONTO PODADO)


O velho jardineiro fora escravo.
É livre, todavia, enquanto lida
com rosa, girassol ou margarida,
hortênsia, lírio, dália, trevo ou cravo.

Entrou de seus decênios já no oitavo.
Não tem nenhum desejo mais na vida
exceto uma área verde ver florida.
Mas donos só cochicham seu conchavo.

Um dia a transação se concretiza
e chega o novo dono, examinando.
Percorre tudo, e até no jardim pisa.

O negro, desgostoso, fala: "Vando!"
Não sabe dizer "vândalo", e agoniza
ao ver que, ali, virou clube ou quejando.

                                                  Glauco Mattoso

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