PREFÁCIO
JÁ NÃO SE FAZEM MAIS CANIBAIS COMO ANTIGAMENTE
A poesia escrita por Eloah Margoni não é digestiva, mastigável, "culinária", como certamente designaria Brecht, estendendo seu conceito teatral à poesia vazia de reflexão. Também não pretende adular ou cativar os leitores, seduzi-los, aliciá-los a ver a vida sob o prisma hipnótico de encantamentos ilusórios. Prepare-se para ler uma obra aberta, um work in progress vertiginoso, capaz de ligar a Grécia clássica ao Brasil da pós-modernidade, através do que ambos — e todos os demais países — tiveram e têm em comum: a busca por um habitat verdadeiramente poético.
A poesia grega era ética, profundamente envolvida com a physis enquanto natureza — fosse animal, vegetal ou mineral e buscava a verdade e o substrato das coisas. Com o correr do tempo, fomos perdendo o fio desta integração, diluindo-nos na pressa e na automatização das relações afetivas, deteriorando a fala, e, agora, em meio a este presente caótico, é através da fragmentação estilística tão própria da contemporaneidade, que, ironicamente, Eloah Margoni nos relembra a importância de voltarmos a fazer este re-ligamento holístico, juntando os cacos, para reencontrar o humano que se debate sufocado e soterrado por definições, conceitos, preceitos, preconceitos e teorias abstratas, no mundo todo.
A primeira parte do livro é mais voltada para a pólis, antiga ou atual, através de suas ruínas
— estátuas ou registros pisados
—, de seus pedaços arrancados, descartados, esquecidos, enferrujados, ou devolvidos ao passado, mesmo que recente. A poesia que dá título ao livro é um belo poema dramático, um épico moderno patético (considerando aqui o pathos negativo, como perda da paixão pelo lugar, enquanto sítio que em si reúne o essencial de algo ou alguém), com diversos elementos que caracterizam o gênero: a postura insurrecta contra o status quo, a saga da trajetória da vida no Ocidente, empobrecida em seu cotidiano, voltada para um tempo criado fora de si, exterior. A Festa aborda justamente este tempo esvaziado de deuses, mitos e ritos, em que os convivas autodevoram-se não mais por prazer, mas tão somente por tédio. "Tudo se desviou... talvez para o inferno". E eis então que surge Perséfone, completando o tríptico poético. Vivendo metade do tempo na terra e outra metade no mundo subterrâneo, sua presença nos faz pensar em nossa condição humana ligada à eterna tensão de sempre estarmos entre o eterno e o efêmero, entre o que é e o que não é, entre o aparente e o encoberto, entre a vida e a morte. Entre. E Perséfone entra, triunfal.
Na segunda parte, embora haja maior dispersão temática, percebemos que a perda da paixão pelo sítio em que se situava o homem o leva a exilar-se de si mesmo ou em si mesmo, não conseguindo transcender suas medidas/limites, acabando por sujeitar-se a uma rota que o leva à derrota e à alienação do real. Em O ovo, o óvulo primordial, encontramos a presença do microcosmo, contendo todo o universo. Em Mapa-múndi, a trajetória individual com suas múltiplas escolhas, às vezes delirantemente estereotipadas e estéreis. Diante de Um amor... percebemos que a autora não cai na armadilha da exacerbação romântica dos sentidos: inevitável nosso sorriso diante do sarcasmo de uma lírica lúcida e irreverente, desviante da tradicional, na qual o sublime sentimento é vivenciado sob a ótica dos sensórios "paraísos artificiais" baudelairianos; entretanto, final feliz: o efeito do ácido não corrói o fascínio do ácido amor. Em Não há janelas, a falta de visão humana, cada um fechado sufocantemente em si mesmo, confinado a seu espaço escuro e sem luz (é imediata a associação com o Mito da Caverna, de Platão...). Por fim, Anchieta e Ciganos são verdadeiros libelos libertários na defesa de uma vida que parece tão distante e remota, porque nos tornamos passivamente acomodados e fóbicos — do pathos à patologia —, receosos de correr riscos, de aventurar, de nos soltar das amarras dos modelos, modas e moldes.
Evidentemente que os poemas não se atêm apenas a esta minha breve e sucinta interpretação: eles proporcionam inúmeros tipos de viagem reflexiva, mexem com o imaginário do leitor e o instigam o tempo todo a repensar não só os valores da urbes como os seus próprios. Este questionamento ininterrupto, feito através de metáforas inesperadas, inusitadas e impactantes, manifesta-se pela hábil junção de passado-presente-futuro em um tempo único, não o cronológico do ente, mas o ontológico do ser: o tempo de todos os tempos, originário, primordial.
E, ao final da leitura, temos a sensação de que A noite grega acrescenta um novo sentido, construtivo, à irônica expressão "presente de grego": é necessário atravessar o oco do visível, para sentir o eco da respiração de tudo o que ainda se encontra oculto, porém pronto a revelar-se para nós. Eis uma poesia densa que requer leitura lenta, mas que de repente, porém, alcança o galopante ritmo de um cavalo alado (Pégasus?), obrigando a nos agarrarmos fortemente a suas crinas até chegarmos a uma dimensão galática pouco conhecida nos dias de hoje, onde ainda é possível ouvir o silêncio, o nosso silêncio, e entender a linguagem como doação desta escuta.
Leila Míccolis