Naquele prédio amarelo
mora uma mulher que eu amei,
que me amou,
e que consentiu em ser minha
numa tarde quente e fedida,
e que veio de rabo de cavalo
e vestidinho preto
e todos os furacões do mundo a comê-la por dentro.
Mas veio.
Mau como o sol de Maio,
o mês que primeiro me viu,
o sol que primeiro me esfriou,
eu me fui.
Que foi dela? Não sei.
E aqui minha memória vira disco riscado,
interrompe-se a canção
e volta-se ao estribilho suado,
ao perfil parado no caixilho
que explodia de apavorante azul.
Eu tenho, sim, memórias.
Registros e coisas que contar.
Naquela escada acolá,
bem naquele degrau de pedra fria e gasta
de pés que não sonham, de pés
que não imaginam, de pés que pisam
e passam e são só pés;
bem naquele degrau eu me sentei
e fui feliz
como não sonham em sê-lo os pés de ninguém.
Bem ali naquele degrau
eu olhei para cima,
e quando a porta abriu
a orquestra parou,
faltou luz, capaz que um monte de gente morreu,
pássaros despencaram de alturas diferentes,
flores piscaram,
e eu lá,
achando que ela não ia descer nunca.
Mas desceu.
Sim, sou só memórias.
Mas se nada me acontece,
como é que tudo me aconteceu?
Só se eu não for eu,
se viver de empréstimo o que não é meu.
Tenho memórias, sim,
memórias minhas afinal.
Meus pedaços no caminho são prova.
A morte em ossos brancos sentada, a morte lenta
que coxeia na minha pegada, que bufa,
é prova. A ela, quando me alcance,
vou perguntar: foi mesmo tudo verdade?
Não sei se ela responde. Capaz que nem pergunte,
vou morrer covarde.
Orlando Tosetto Jr.
Enviado por: Silvana Guimarães