Quando eu tinha 10 anos
minha irmã casada
me chamou no quarto.
Tinha parido o seu primeiro filho
e, entre relaxada e displicente,
pediu que eu lhe pegasse
um vestido no armário.
Deu pra eu notar, de soslaio:
estava só de calça e sutiã.
Tinha uma pele branca e flácida,
barriga intumescida,
em nada a minha irmã
de fantasia de havaiana,
divina, entre os fiapos
das matinês dos filmes
de final de semana.
Um mal-estar só de alma
me invadiu por inteiro
e fui chorar na sala.
Depois outra irmã pariu,
e eu, já nos meus 12,
tomei o trem e fui,
entre vaidosa e grave,
ser madrinha no Rio.
Olhei meu afilhado
roxo e de tantas peles
que me assombrava o tato
visual. Bem mal retive
aquele horrendo flash.
Fui chorar no banheiro.
Não quis saber de festas e retratos,
voltei as costas pra eles
e, só, no meu quintal de Cataguases,
nas grimpas da mangueira,
chorei e vomitei minha orfandade.
Aos dezessete, uma colega
do curso colegial
me ensinou fatos da vida.
O que meus pais tinham feito:
tremenda porcaria
pra que eu fosse parida.
Fiquei chocada.
Se nunca os vi de abraços, beijos,
e cada qual tinha o seu quarto...
Alguma coisa se quebrara em mim
como a cabeça do bebê de porcelana
que o meu primo Juquinha me trouxera
nos seus troféus da Itália
quando pracinha entre guerras.
Aprendi a fazer bruxas de pano
bolas de meia, petecas de folhas
de milho ou bananeira
e penas de aves.
Mesmo em Belo Horizonte pulei corda,
jogava amarelinha com cacos de telha,
e até os meus 19,
por fora, bela viola,
por dentro era uma moça retardada.
Não me casei, não pude
desfrutar de namoros mais ousados
até completar os 30,
já fora e longe de casa.
Nunca respostas para tais perguntas
que ainda me sufocam
neste sem tempo/espaço.
Jamais a ratificação do doce, terno,
baldado romantismo lido em livros
e telas
na pauta da memória
de alguma sinfonia inacabada.
Maria do Carmo Ferreira