Num cachorro de três pernas
Geralmente a que falta é de trás.
Ele olha, o cachorro de três pernas,
E não sabe o que fazer com a gente.
Ele não tem medo nenhum da nossa cara,
Ele já perdeu uma perna,
Ele não tem alma para perder.
Ele nos encara com curiosidade.
Ele anda aos pulinhos, parece sempre feliz.
Que alegria, não ter perna.
O mundo é cheio de som e interesse,
Cheio de cheiros. A perninha voa sozinha.
Cachorro de três pernas tem dois olhos
Encravados na cara como espinhas inflamadas.
Ninguém tem culpa, ô vira-latas,
Vai cuidar da vida, achar cadela. Teus filhos serão normais.
A cachorra faz amor com ele, ela não liga.
Se o cachorro tiver barriga, ela também não liga.
A cachorra não ama, mas tem um minuto lá
Em que o cachorro de todas as pernas é só dela.
A cachorra podia derrubar o cachorro de três pernas.
Podia dizer: eu tenho medo e nojo de você.
Mas ela nem vê perna, olha que sorte a dela.
O cachorro nos estuda e nos acha esquisitos.
Diz que, não importa a quantidade de pernas
Nem a companhia de quantas cadelas, o cachorro
Vê em branco e preto. Será que ele sabe
Que somos mais do que gatos? Mais do que bisturis.
Mais do que tratores, aviões, telefones, legumes e frutas frescas;
Mais do que serestas, tapas, lenços molhados, camas,
Corpos e suspiros; mais do que gritos, mais do que som
E fúria e gemidos? Mais do que iogurtes e ganidos?
O cachorro de três pernas não é um sábio,
Mas merece um monóculo, um diploma honoris causa
Em gente que tem duas pernas, dois braços,
Tudo no lugar, mas a quem falta o olho manso,
O sorriso bobo, a vontade de ser enganado,
O ombro erguido, a palma da mão voltada pra cima
Pedindo prego, beijo e sonho. O cachorro sabe,
Entende e explica os aleijados.
O cachorro com seu bafo pula aqui, pula ali,
A gente acha que ele está perdido no mundo,
Ninguém nunca entendeu caminho de cachorro.
Ele, como nós, vai prear destino.
Orlando Tosetto Jr.