— Amigo, tenho algo a lhe dizer!
— Diga logo, pois tenho muito a fazer.
— Peguei um ônibus hoje cedo, desci a serra!
— E eu fiquei na cidade, lutando na guerra.
— Não vejo sangue. A que guerra você se refere, homem?
— A guerra diária contra a minha fome.
— Nessa guerra eu também estou, sei como é.
— Então deveria ter descido a serra a pé!
— Resolvi que merecia um pouco de conforto.
— Pois saiba que assim você logo cai morto.
— Deixa disso, vou te contar como foi meu dia.
— Conte logo, a vida é curta e a morte não adia.
— Pisei em Santos, botei meu pé no mar.
— E daí? O mar dinheiro não pode dar.
— Senti o sabor salgado daquela água pela primeira vez.
— Eu vi o mar duas vezes ontem, nas minhas duas tevês!
— Ver de longe eu já tinha visto. Aposto que você nunca
mergulhou.
— Já mergulhei no mar há anos. Mas nenhuma praia já
me alimentou.
— Não alimentou porque você não deixou.
— Por que diz isso? Naquela imensidão azul aposto que você
só comeu sal.
— Alimentei-me do poder do mar, que protege minha alma do mal.
— Você voltou de lá em demasia poético, o oceano
é tão banal...
— Banal para a pessoa que aceita o tipo de vida a que está submetida.
— Para mim o problema é você, que parece querer fugir
da vida.
— Quero fugir dessa vida sim, viver para sempre à margem daquele
oceano.
— Você tem dois filhos para criar, o mar para eles só
traria danos.
— De maneira alguma. Eles aprenderiam a viver.
— Decerto também aprenderiam a sofrer.
— No mar só há coisas boas. Eu viveria sobre a areia,
sentindo a paz e o aconchego.
— Enquanto seus filhos virariam forçadamente faquires à
procura de algum emprego.
— Melhor do que passarem fome presos nessa cidade.
— Aqui ao menos há esperança e sonho de liberdade.
— Já perdi a esperança faz tempo. Vivo apenas para meu
sustento.
— Também faço o mesmo. Mas dar conforto aos meus filhos
eu tento.
— O mar pôde me fazer repensar, pelo menos.
— A única coisa em que penso é como obter um aumento.
— Tente outros caminhos. Afinal, há tantos!
— Amigo, quanto custa a passagem até Santos?