Rua de pobre não carece asfalto:
pobre não tem automóvel...
Rua de pobre não carece luz:
pobre deita cedinho...
Não precisa também numeração:
não vem carteiro,
não vem telegrama,
não passa lixeiro.
Cada casa é indicada por um acidente:
aquele do tôco é do João Dorminhoco.
A da laje no terreiro,
é do Zuza Pedreiro.
Essa da gaiola,
é da Maria Paxola.
A da trepadeira
é da Luiza Peixeira.
Tem casa torta pra lá,
tem casa torta pra cá.
Casa inclinada pra frente,
casa empinada pra trás.
Parecem formar ballet,
parece que vão cair
mas continuam de pé...
Vem lá de dentro uns berros de mulher:
Pass pá dento Juaninha!!!
E Joaninha num berreiro:
"Mãe, furmiga tão me cumendo,
eu caí no furmigueiro!
"Do outro lado alarido
um cão que quebrou panela
e apanha como um danado!
E sai cada palavrão!...
Coitado do pobre cão!
Um papagaio se expande
numa algarávia maluca:
"O lelê carapeba é pêxe de má
Ô lele carapeba é pêxe de má.
Currupaco — papaco
Currupaco — papaco.
Lôro... Lôro..."
E tem menino sambudo
brincando na enxurrada
pra se esquecer da maleita...
Lá na esquina, um vadio
tira dois dedos de prosa
com a morena dengosa
que vai à venda comprar.
Bebe um trago de aguardente
e oferece pra toda gente
sem mesmo poder pagar:
— "Não são servido, mecês?
Ë entorna o copo de uma vez!
Vem gemido da vizinha
que está com dor de dente...
Vem canção de carnaval
lá no fundo do quintal...
"Tava jogando sinuca
uma negra maluca me apareceu.
Vinha com o filho no braço...
..............................................
Mas essa rua tem alma!
Tem alma e tem coração!
Hoje só há tristeza...
Morreu o João da Tereza,
— fogueteiro que enfeitava
as noites de São João.
Vão cantar a noite inteira
até o dia raiar.
Vão cantar as "inselença"
que é pro João se salvar.
"Uma inselença da Virge da Conceição
Deus num primitas que eu morra sem cunfissão.
Duas inselença da Virge da Conceição,
Deus num primitas que eu morra sem cunfissão.
Três inselença da Virge da Conceição
Deus num primitas
que eu morra sem cunfissão...
Quarta inselença"...
— São doze inselença
E não se pode parar
porque senão dá azar...
Mas quando é noite de lua
e uma viola soluça
esse abandono fatal,
como é bonita essa rua!...
Rua de pobre esquecida
do governo da cidade!
Sem água, sem luz, sem placa,
Sem carteiro e sem lixeiro
— rua que nem nome tem...
Só a lua é tua amiga,
só a lua te quer bem.
Rua de noites perdidas,
de dias estagnados
num bairro pobre qualquer...
Rua de cães vagabundos
pelos terrenos baldios,
de gatos pelos telhados...
teu nome devia ser:
Rua dos abandonados.
Marilita Pozzoli
Do livro: "Enquanto espero as rosas", Ed. Henriqueta Galeno, 1969, CE.