Zune rijo o nordeste, o quebra-mar, deserto,
Estoura aos repelões brutais da levadia;
Crepuscula; faz frio; o temporal vem perto!...
Barcos a boiar voltam da pescaria!
No cais, dando-me o braço, ou antes agarrada
Ao meu corpo através de um véu azul-marinho,
Alice, a minha noiva, erguendo o narizinho,
Grita, sorrindo alegre à fina espumarada:
Como eu gosto do mar! Que coisa divertida!...
Ouvindo a exclamação, pálida, surpreendida,
Volta-se uma mulher de olhar cheio de mágoas
Que, como nós, fitava o turbilhão das águas;
Trazia pela mão uma criança loura.
Chega à borda do cais e ali, ameaçadora,
Fixando o mar, fechando o punho, erguendo a fronte,
Diz, apontando ao longe as trevas do horizonte:
Foi por um tempo assim, tal qual, minha senhora,
Que uma tarde de abril, vinte anos já lá vão,
meu pai, o velho André, pescava barra afora,
Com meu sobrinho Cláudio e Pedro, meu irmão.
Afogaram-se os três...
Foi por um tempo igual
Um barco foi a pique ao entrar no canal.
Tinha como patrão meu homem Zé Maria
O melhor pescador deste porto; pois bem,
Ali, naquela pedra a cabeça esmigalha!...
Meu filho, meu José vinha a bordo também;
Grita pelo vigia; a notícia se espalha;
Reboliço na praia; oito barcos no mar,
Tudo, porém, debalde; aqui, deste lugar,
Eu vi morrer um filho a seis braças da terra.
Soprava o vento com rugidos de hiena.
Meu derradeiro filho, meu bordão Vicente,
Pai desta pequerrucha marujo de guerra
Indo enriçar a vela de mezena
Caiu dentro do "mar!...
E trágica, e inclemente,
A velha, sacudindo os dois punhos cerrados,
Continuou falando aos vagalhões irados!
Mar sem misericórdia! Assassino e ladrão!...
Mar que matas os meus e me deixas sem pão!...
Maldição sobre ti, negro mar sem entranhas!
Escarra a tua espuma em meus cabelos brancos.
Esbraveja cruel! Mas debalde te assanhas,
Jamais abafarás com teus urros e arrancos
O soluço das mães a quem roubaste os filhos.
Como eu te odeio mar...
Desgrenhada, descalça,
Do cais fincando os pés, quase na borda falsa
Que bravia a ressaca espumejando alaga,
A pupila a chispar relâmpagos e brilhos,
A velha, alto vibrando a vingadora voz,
Parecia uma fúria infernal e feroz
Acusando o Oceano e excomungando a vaga!
Interpelei-a então:
Este mar iracundo
Este implacável mar que um túmulo tem sido
Para os seus, que lhe rouba os filhos e o marido,
Por que o não abandona este maldito mar?
Vi dissipar-se logo o ódio daquele olhar.
Encarou-me um instante e perplexa, espantada,
Torcendo as mãos, curvando a fronte resignada
Respondeu com uma voz tão triste que doía:
Mas se eu deixasse o mar, senhor, eu morreria...
Pethion de Villar/Egas Moniz Barreto Aragão