CERCO A KANDAHAR
Fulge a tarde
no vermelho da infantaria
(algum touro
perdido
entre brocas
num galpão soca
os cascos late
gane, morre)
entre pedras os óculos empalidecem
novamente o vidro roça
seus consórcios
unta de uma borra espessa
o sêmen desses dias
é um vidro sem dor
a serviço do inferno
ouviste?
um comboio precipita tudo
ao menor som de gazes
atiradas
neste rio sem conseqüências
é um som tardio
(interdição)
mas humaniza-se a estrada prenhe
dentro de seus sais urbanos
que o deserto esquematiza.
Nasce um menino
destas linhas
sólido
como um príncipe respeitoso
nasce um brilho
entre escusas sentinelas
daquilo que escapa
à bílis
ao sol prematuro.
Fomentaste a colisão?
és infinitamente turvo
nesta sala em delicada desordem.
Desarma os teus pés
calçados deste ferro
um outro ferro
abate
há dias
os teus pulmões
ante-salas
da noite deflagrada.
E teus olhos caem.
Está nua a cidade
(cidade)
atrás do cerco
e com alguma
volúpia
feliz ou rasa
está contente
laços de roupa estriada
fontes
da baça mutilação
jorram dos fossos
(ventres)
como falas arteriais.
Um instante sem disciplina
recruta
invasores
um mecanismo de carne
que o tempo paralisara
cose
aventais
(como são brancos os teus olhos
potentes hortaliços
entre condimentos maiores)
O que previne
o teu estilete?
que quer
sob os dentes
raspar?
o repórter
está cego
a esposa
procura divertir-se
guarda
sob os tetos
o teu barítono estilete.
Come um pouco desta negra
terra intestinal que
pervaga entre assaltos
Ensina um pouco a este órfão
estas maneiras
e glosas que entre
folhas tristes
(no silêncio úmido da louça)
descobriste.
Que surda horda
na diurna furna
milita?
Quem golpeia em teu recesso?
e imprime
no selo dos ossos
o derretido ódio?
Um ferimento novo
escava sempre o teu orgulho.
NAVEGAÇÃO
Shelley
Tudo é navegação:
rastejar sem medo
nos ouriços
rolar-se no chão acolchoado
ou ainda
abater-se o sol das galerias
esfregar-se no rosto o tombadilho
(em mar espanhol
os dentes pegados
expiam
e da morta agitação
um governo escuro
aparece
como pranchas, ou batedouros
na noite injusta do mar rochoso
como vícios, ou
cáries
no vão abscesso do mar vencido).
Tudo imita a burra catraia
feito quilha nas dobras
de um rei idoso
farol sem luzes
imenso fruto sem abismo.
O REPÓRTER CEGO
Laís Corrêa de Araújo
Que dez mísseis miravam
teus gelatinosos olhos?
viu-se talhar o fim
viu-se o fim, mas teus olhos
viram nada, escuro
que era dentro deles
vago que era o som de reis
depostos, rainhas purificadas.
O corpo é mesmo isto
senão continuada fragilidade
teus dedos procuram
em vão nas cavidades vazias
o que vida, e claro
mentia. Mas mentia
lúcido pincel incêndio
perplexa lente
os olhos não há
rastreie o calor
das fábricas países
fortificando-se
cheire o íntimo
dessas cortesãs
tudo gira no negro redor
sons em negociação
patrimônio de vento
tua pele registra
e que interdição
anuncia?
E quando silencioso
o metal invade
com seus vestígios
a manhã direita?
Não saberás
o mundo neutro sonega
as fáticas sombras
reserva apenas o insulto
o duro insulto que nasce
dos olhos e cego golpeia.
Ricardo Rizzo