Os dentes de Maria não lhe cabiam na boca
e o coração era maior que o peito.
Nasceu pobre, numa casa em que
a taramela quebrada
da janela do quarto
guardava o hálito morno
da manhã de sol.
O cheiro sempre acre do urinol
de ágate descascado
embrulhava estômagos
enquanto a louça descansava
em bacias de alumínio.
Um dia casou
e teve filhos e netos.
Viu o pai morrer,
a mãe morrer,
o marido morrer.
E viveu.
Mas o tempo passou.
Maria envelheceu
e seus dentes caíram
aos poucos, um por um.
Do sorriso, nada resta.
Apenas os calos nas mãos
de esfregar a roupa no tanque.
Também o peito desistiu
de palpitar.
A vida virou um
urinol de ágate cheio.
Até o sol sumiu da janela
e nem a louça seca ao sol.
Só sobrevivem
as galinhas no porão: pra vender,
o chuchu no balaústre: pra comer,
a água do poço: pra beber,
o tanque de roupas: pra sofrer.
Érica Antunes