A minha inspiração vem do arroto de feijão
Do barulho da caixa de descarga
Da mão quando se lava
Do azedo do sabão
Vem da filha pública no hospital
Do cheiro de suor no coletivo lotado
Do sangue no corte do sisal
Do carro desgovernado
Vem da força no cabo do arado
Da grávida de várias vezes
Do cheirador de cola abandonado
Do bêbado fedendo fezes
Vem do esgoto da praia cheia
Do travesti que esconde seu desejo
Do estupro de cara feia
Do desabrigo da ordem de despejo
Vem do tédio
Da falta de remédio
Da goteira no prédio
Da maldade do assédio
Vem do pobre cantando brega
Do bandido matando a fome
Da caridade que só se prega
D o filho sem pai no nome
Vem do carroceiro vendendo bicho
Do médico mal remunerado
Do mendigo comendo lixo
Do surfista todo quebrado
Vem do segredo da esquina
Do operário que sabe nada
Da prostituta inda menina
Do Galo da Madrugada
É a roupa surrada e falha
É o cigarro paraguaio
É a dengue que logo espalha
O estouro do pára-raios
É o pneu careca
O carro empurrado
O padre que peca
O rosto esmurrado
Da telha barata
Do rango requentado
Da receita que mata
Do vilão inocentado
Da lombriga na barriga
Do nariz assoado
Do galo que briga
Do bife mal passado
Do pão com ovo
Do café da manhã
Do grito do povo
Do cortador de maçã
Vem do endividado
Do professor municipal
Do telefone cortado
Do classificado no jornal
Do cabo eleitoral
Do lixo no carnaval
Do gasto com arsenal
Do Jornal Nacional
Vem da seca queimando o chão
Do gado em osso tísico
Do assobio do sertão
Do calo no deficiente físico
Vem da careta
Da muleta
Da lambreta
Da sarjeta
Me inspiro no lodo
Que compõe com a vida o todo
Para poetizar
Não vivo a falsa ilusão
Que um verso bonito ilida
Só ando na contramão
Versando como é a vida