Hoje, estou danada e sem sono.
Passei a noite em vigília,
vagando dentro dos meus sonhos.
Que farei, se sempre estou à deriva,
navegando por onde nunca sei?
Lembranças vagas dos homens que amei,
fazem-me reviver amores,
quase todos lacrados por ânsias ancestrais:
infantis, maternas, paternas e muitas outras
que nem sei os nomes. Mas sobretudo ânsias,
puras ânsias embrulhadas em lágrimas
que só choravam por mim.
A tristeza que me entristece
é ter amado homens que nunca existiram.
Homens de papel marché.
A feira da esquina de minha rua
está cheia de frutas, de formas, de cores e de vozes
que embriagam os olhos e criam cobiça.
Ontem, depois de ficar acariciando por horas
uvas redondas, grandes e verdes,
mordi-as com a fúria dos amantes ensandecidos.
A boca, traída pelo olhar, saboreou
um gosto amargo de bílis.
Nem todos os homens que amei
foram fantasmas sem perfumes.
Nem sei porque nos separamos
se nós amávamos tanto.
Ficamos famélicos, desenfreados,
e intoxicados de amor perdido.
Acho que é por isto que ficaram as saudades
do que poderíamos ter vivido.
Se tivéssemos ficado juntos,
estaríamos cultivando com carinho
o ódio dos casais em doses letais.
Acaso nos colocou frente a frente
e o amor que se imaginava eterno
escorregou
e se quebrou dentro do meu coração.
Permaneceste idêntico, mesmo ficando diferente.
Eu me transformei, mesmo parecendo idêntica.
Nossos semblantes sofreram a ação implacável
do Tempo. Mas não é o Tempo a causa de nosso espanto.
Outra coisa que não sei o que é matou o nosso amor.
Desconfio que mesmo continuando a existires,
não és mais aquele homem que tanto amei.
Em vez de ficar só com os lamentos
e a melancolia das amantes
troquei de vestido e fui ao cinema.
Não sei o nome do filme,
só sei que fiquei duas horas
esquecida de mim, cercada por sangue, mortes e
gritos. Torci pelo assassino,
que era um homem muito bonito.
Depois fiquei com pena das vítimas
e torci para que o assassino
fosse pra cadeira elétrica.
Quando saí do cinema, lembrei que sou contra
a pena de morte. Então pensei: coisa esquisita
é uma estória com imagens vivas.
Faz até a agente esquecer a consciência!
Se amor é como um filme de suspense,
então resolvi: nunca mais vou amar
e assim levo sempre a consciência comigo.
Estava saindo de um bar,
quando escutei aquela voz em meu ouvido:
— Gostaria de te ver novamente.
Só por causa dessa voz, estou indo
me encontrar com um homem desconhecido.
«
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