Para enxergar à noite, é preciso
primeiro: ter medo
muito medo e respeito:
que a noite é perigosa, poderosa
e sempre cobra
daquele que viola os seus segredos
Tem que ser dela amigo
muito sincero,
e amar em suas sombras, descobrir
o que há de belo
no mais avesso dos brilhos
É mais que necessário saber dos seus serviçais:
morcegos, cobras e sapos
besouras, corujas, gatos e ratos;
assim como dos seus menestréis:
prostitutas, polícia e bandido,
os que trabalham à noite, os mentigos
o olhar dos assassinos,
e os gemidos dos que se atiram ao suicídio
Há que já ter bebido tanto, que caído
anjo na sarjeta adormecido;
e agradecer, como a um deus
ou a um sincero amigo,
ao cão aleijado, vadio,
que lhe veio lamber o focinho
É atravessar guetos e feudos
nas ruas, nos becos,
entre os tipos mais esquisitos, anormais,
e sentar-se entre eles, ser mesmo capaz
de falar, de calar,
sem despertar os animais
Saber das fases da lua, e
tanto quanto ela o permita,
da sua face obscura.
Acreditar em São Jorge e no dragão,
escolhendo, de pronto, o seu lado, a sua missão;
e arredar de si qualquer esperança
de ser um homem inteiramente bom
Há que chorar, desesperado
o choro mais afogado;
e soluçar o mais alto,
sem que perceba o casal da mesa ao lado;
e o seu riso,
o riso da alma,
mesmo à mais alegre gargalhada,
nunca deixe alguém entristecido
A fé, deve ser absoluta:
em si
e nalguma crença oculta;
e a sua luz à distância se ofereça,
tanto que a confundam
com o caminhar de uma estrela
Para enxergar à noite é preciso
levar a alma sempre escurecida
Tanto quanto ela mesma, se possível
nunca desatar dela o umbigo.
Conhecer de toda a verdade
toda a mentira;
e, fundamental:
que a noite é clara,
que escuro é o dia