Arrumei todas as gavetas,
numa delas encontrei as mãos
brancas da minha vó.
Virei sapatos, achei ratos e fósseis
de gatos no porão.
Num canto de guarda-roupa
deparei com um quadro velho
onde se desenhavma os olhos de minha mãe.
Também vi gavetas em formato de grandes
bocas,
a escrivaninha tatuada dos pés de meu pai
e eu, envergada sobre uns livros brancos
e pretos de poesias e culinária.
Encontrei fugaz e na correria,
minha primeira anágua — obra-prima de minh
a tia,
dedais oferecendo-se para as cartilagens
flácidas
e o sobretudo do vovô que eu não usei
para sair à chuva
e que apenas coloquei no ombro
do meu amado
numa estrada que não era a minha.
Há fumaça na chaminé, a fogueira continua
acesa,
o carvão é o mesmo das belas árvores do sítio
o fogo é outro porém sinto um cheiro fátuo.
Deus, onde andam a minha espreguiçadeira
a minha bruxinha e o pequeno terço de rezar
contra os demônios das noites insones
de menina precocemente desperta?
Vi congelado um peixe, numa geladeira 1958,
pedaços de gilete que foram em alguns instantes
a minha morte branca de hospital sangrento.
Sinto um odor de brilhantina,
graxa de sapatos, cera dos dias de festa
e um cheiro horrível de ossos poderes
da empregada que morreu bêbada
esperando um filho.
Toda essa sedimentação se liquefaz
dentro de mim hoje — o dia em que meu
lustre mental de baile e fantasia
é ternamente apagado.
O colt 44, o cinturão de balas,
Marlon Brando, Glend Ford, heróis favoritos.
As minhas noites de velas e serenatas
estão só vividas na memória.
Continuo me equilibrando no ar da respiração
densa e vertiginosa.
Adeus, vou rezar para Apolo
para que vele minhas noites de sono solto
e desacalmado.
Do livro: "Carmem Antônia Migliacchio enlouqueceu",
Edições Pirata, 1980, PE