A lenda, porque lenda, é verdadeira.
Assim direi que, mesmo transmitida
por minha boca — pântano de enganos —,
é de verdade a herança que te deixo.
Por verdadeira, cala sobre o tempo
das coisas que ela conta acontecidas,
das quais nenhum sinal há sobre o mundo.
Só declaram seu tempo coisas findas,
as que perderam fala, mas gaguejam
quando, por loucos, vamos despertá-las
tão tristes nos seus túmulos abertos.
Os olhos imutáveis da verdade
pairando sobre o tempo nos espiam.
Pena, porém, não reste sombra ou rastro
do que, em campo de lenda, floresceu.
Por mais que se andem léguas e se escavem
planícies e penhascos se derrubem,
não se encontra um vestígio, além dos dois
que, irmãos da lenda, intactos permanecem:
o homem e o mundo — sempre recusados
porque são manifestos, são os únicos
sinais que provam todas as verdades.
A lenda, porque lenda, é verdadeira.
Pois o próprio das lendas é a verdade,
como próprio do amor que não se acabe,
que seja fundamento de si mesmo
e fundamente a vida de quem ama.
Do livro: "Vento geral", José Olympio, 1960, RJ