Ao artista plástico Elvio Becheroni, a propósito de seu livro Luoghi di Memoria
 
Você me pede para escrever algo para seu livro de gravuras
quer que fale do Rio de Janeiro
e conte histórias
de lugares e viagens e memórias
talvez
qualquer coisa
como em 1979, eu chegava ao Rio de Janeiro
pelo caminho do litoral, pelas praias da Rio-Santos
trazia no rosto queimado de sol a expressão tranqüila
dos que vivem à beira mar
qualquer coisa
como aquela noite no alto da Urca
então chamava-se Concha Verde
e antes chamara-se Frenetic Dancing Days
ela tentava convencer-me
de que as luzes da cidade eram olhos dourados que piscavam na neblina
e eu concordava que havia ruídos de mar
ressoando no bojo da nossa loucura
qualquer coisa
como aquele dia inteiro passado a caminhar na praia:
impulsionava-nos certa atração pelo sublime
e nós nos entretínhamos a decifrar a errante caligrafia do tempo
nervosamente rabiscada na pauta das ondas
até que punhais de nuvens arcaicas emoldurando o entardecer
viessem se cravar em nosso infinito
e sentíssemos os cabelos da noite crescendo vagarosamente
pois a escuridão havia chegado
para reclinar-se em seu colchão de maresias
então,
entre a onda e o lampejo da onda
entrevimos o perfil em chamas de nossos corpos
entre o vivido e o não-vivido
o traço cambiante da arrebentação
entre os ruídos do mar e os ruídos da cidade
a complicada geometria de nossos silêncios
e um inesperado perfume de jasmins
por mim
nunca mais sairia dali
ficaria por lá mesmo
para sempre percorrendo a praia
a acompanhar a insofrida inquietação dos astros presos a suas órbitas
mas acabamos nos perdendo
entre redomas de luz amarela de mercúrio
nos confusos labirintos de um jardim
e há tantas histórias a serem contadas
e você me pede que escreva sobre o Rio de Janeiro
mas não existem cidades
são nossas viagens que criam roteiros
— mapas de superfície luminosa
como estes em seus quadros, reflexos do céu mais estrelado de Samarcanda, do límpido entardecer  florentino, o outono transparente de São Paulo mais a inquietante névoa de Nova York, lampejos dourados de um campo lombardo, seu poente animado pelo sopro da planície
as cidades não existem
só os encontros são reais, as prolongadas conversas
capazes de transformar qualquer lugar em praia deserta ao anoitecer
só existe o diálogo,
nossa primitiva capacidade de nos sentar ao redor da mesa
para atravessar a noite contando histórias
de viagens, descobertas, visões
com a candura de garotos trocando figurinhas
investidos, porém, de nossa identidade de bruxos
fazendo soar seu tambor noturno
sabendo-nos observados o tempo todo, de relance
pelo rosto insone do Belo

Claudio Willer

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