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Rapidamente, no susto, descobri
que a claridade displicente da minha janela
era a da tarde, a luminosidade amarela
da tarde..
Os sons foram os primeiros
a ser registrados e decodificados....
Os carros à tarde se movem e nos ensurdecem de maneira diferente,
talvez porque motoristas da manhã, ainda sonolentos,
estejam menos estressados, menos cansados,
menos perturbados...
Sei lá, palpite, não duvide desse ouvido
educado... para identificar muitas qualidades
de sons....
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Eis que me lembro de tons
e me lembro do sonho medonho que tive.....
Dava uma aula louca, onde a zona era outra...
Falávamos dos modernistas.
Falávamos dos peitos caídos da mulher de Tarsila.
Mulher meio gorila, disforme e de cores estranhas...
Castanha mulher.
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Na mesma hora e sonho, dona Ilka falava
de Oswald, do scarpan e do champagne de Pagu...
Eu me via, ouvindo menina,
delirando com a sensualidade explícita do gesto
E chorando com a morte trágica da mulher...
enforcada pela própria echarpe,
em tempos que os automóveis a 20 por hora
eram tema das histórias de Stanislaw Pontepreta...
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Dona Ilka era das minhas, uma louca gorda de Botero
Sua sensualidade brotava das ancas italianas,
dos seios fartos que ela fazia questão de frisar nos ciao bella
Ela me falava dos carcamanos como o próprio Volpi
Do Edifício Santa Helena...
E da bandeirinhas que coloriam toda a tela...
Dona Ilka era a própria Semana de Arte Moderna!
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Mórmon que tomava café escondido,
Seu vício na brasilidade, americana pelo marido
Falava da geração de 30-40 com cuidados redobrados
Eram tempos difíceis aqueles...poderia sem querer,
tecer comparações com os militares de plantão
Estava feita a confusão, prisão, danação..
medo....
Alguns segredos deveriam ficar guardados...
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E como graças aos deuses, à guerra
e à industrialização...Bilac foi aposentado,
minha aula Versos Modernos poderia
continuar livre das métricas, e fazer poesia
galhofa das fileiras, das carteiras costumeiras,
do espaço-tempo pequeno e lento
Das quartas-feiras...
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Eu falava a alunos modernos interessantes,
interessados navegadores da rede...
e criávamos novas teias de saberes...
Meus alunos conheciam o Sol Poente da Tarsila
se encantavam com ele, mergulhavam nele...
Poente como a tarde de meu sonho medonho...
Poente de geometrias circulares e de milhares de linhas...
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Criticávamos os castelos fascistas de Plínio Salgado,
que vestido de verde-oliva fundava o Movimento Anta.
— Que anta coitado!
Eu pensava que detesto os usos
nacionalistas do Verde-Amarelo..
tão singelo e tão malvado em mãos escusas, oportunas...
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O time da sala torcia pôr Oswald e acordava
o menino de Graciliano Ramos
que vinha com sua cadela Baleia...
Que coisa doida, só Graciliano faria
uma baleia nadar em plena seca
Na água salgada que escorre dos olhos nordestinos,
o maior animal marinho era companheiro franzino
de menino magrinho, seco, esturricado...
No sertão que expõe entranhas seculares de
inúmeras Vidas Secas...
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Paranóia ou mistificação?
Monteiro questionava Anita
e eu pensava naquela arte,
às vezes, tão elitista, mas bela
porque arte não deve ter cabresto,
deve ter contexto, pretextos para existir.....
Eu relatava o clima posterior aos tomates...
E antes que meus alunos questionassem
Eu me adiantava, expressando indagação:
A Semana de Arte Moderna,
o que me encanta nela?
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A interdisciplinaridade, a criatividade, a coragem
de dizer coisas diferentes ou de formas diferentes
Gente cantando, dançando, dando concerto
E nesse aperto, poemas e discursos estético-filosóficos
surgiam
uma burguesia já muito consumista, perdida,
ora aplaudia e financiava, ora vaiava...
Os artistas? Queriam ser modernos, queriam ser eternos
embora amassem a velocidade de como as coisas iam...
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Mas o mais interessante é que os modernos
não foram convidados para a festa de arromba:
Eliseu Visconti, Artur Timóteo, Belmiro de Almeida,
não fincaram, em 22, nem pé, nem bandeira
na baderna brasileira....
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Mário de Andrade defendeu a estética na Klaxon,
um veículo de auto- promoção e afirmação
de idéias
em tempos onde a propaganda se fazia a partir
da prensa, da palavra, do ato em si...
Tempos que já estavam chegando ao fim
na era do DIP, do Rádio e da Hora do Brasil...
Que seriam substituídos décadas depois pelos plin-plin....
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Meu sonho sem fim, não tinha pouso certo...
Era moderno e discutíamos horas a fio
envolvidos pelos poemas- paródias e pelos
acordes nacionalistas de Heitor Villa-Lobos
Tínhamos algo em comum com os modernistas:
Desejo de conhecer a realidade brasileira...
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Mas, meus pupilos, discípulos não eram autoritários,
não estavam surdos às diferenças
e não queriam estigmatizar a cultura popular.
Eles pluralizavam os termos: culturas, nações, muitas
caras,
muitas divergências, muitas diferenças,
muitas etnias, muitas línguas, muitas religiões, muitas
opiniões.
E a aula corria solta, gostosa com cara de boa prosa...
E, nesse momento,
Nós, conjuntamente, inaugurávamos outro movimento...
Acordei do sonho, assustada, tonta pela luz amarela
que entrava pela janela....