A certidão de óbito prova que morreste.
Estive em teu velório, não te lembras?
E, na minha declarada posição de agnóstico,
eu próprio sou a prova de que tiveste um fim.
Estás morto e sepultado, meu velho.
E porque te foste,
a minha memória tenta esquecer as vezes
em que, criança feliz,
brinquei de cavalinho nas tuas pernas.
Eu era um rei e tu, soldado valente,
me prometias defender de todos os perigos,
como efetivamente o fizeste
até o último dos teus dias.
Imagina, pai, que hoje lembrei dos teus serões,
quando, cansado, arranjavas tempo e forças
para contar belas histórias infantis
que até hoje povoam minha imaginação.
Tu fingias ter muito medo do gigante
que morava nas nuvens, em cima de um pé de feijão.
Para te acalmar, eu jurei que, quando crescesse,
iria cortar aquela árvore descomunal,
fazendo o inimigo cair inofensivo à tua frente.
E quando eu dormia, em meio a alguma história,
teus braços me enlaçavam e me conduziam ao leito.
Foste o personagem perfeito,
representaste bem cada um dos teus múltiplos papéis.
Não sei por que estou a relembrar tudo isso.
Também não sei por que estou a conversar contigo
— como se houvesse um correio para o passado —
se já morreste há doze anos.
Mas é que meus filhos, teus netos Saulo e Suzana,
tiveram a coragem de dizer, cada um a seu modo,
que sou eu o melhor pai do mundo.
Eles não sabem que, gratificado,
me tranquei no banheiro a chorar, escondido.
Mas o título, meu velho, é indiscutivelmente teu
e eu o entrego a ti, na solenidade do meu silêncio,
com longos anos de atraso, é verdade,
mas com a mesma honestidade que me cobravas
quando eras vivo.