a Miguel Sanches Neto
Desde que despertei está chovendo.
Aliás, desde antes, pois, ainda dormindo,
claramente escutei chuva caindo
longe, por trás de um sonho: meu pai lendo,
para mim, Hora Absurda; ainda estou vendo
seu rosto em luz antiga. Quase findo
é o dia, agora, e a chuva caindo, caindo...
E em minha alma meu pai ainda está lendo.
Não é, como no poema, um ouro baço
que chove aqui: é só água do outono
que o calendário traz nos fins de março.
E a voz prossegue. E, num sonho sem sono,
me consola de mim neste cansaço
de outonos falsos, sombras, abandono.
(Inédito)