O Poema da cidade
Os guerreiros das tabas sagradas, os portugueses descobridores, os pretos
trazidos da África e muitos outros turistas, fizeram uma raça
nesta terra do sol, das montanhas e do mar. A nossa raça do Brasil.
Ela anda nas mulheres bonitas, nos homens ágeis, na poesia que fala
como se fosse música, na música que é poesia desfolhada...
Todas as manhãs e de tarde e de noite, a raça brasileira
passa pela minha porta na voz dos pregões cariocas. Os pregões
cariocas que escrevem no ar o poema da cidade. Alguns, cheios de madrugada
ainda:
Acalmam o começo do dia que o caminhão do leite tinha desvairado.
E vem tímido, cada um com seu tom diferente, o seu ritmo inconfundível:
"A fregueza quer ovos? "
"Jaboticaba mineira... mineira... mineira..."
"Flores... florista..."
"Garraf'vezie..."
"Abacaxi... é de Vila Nova..."
"Vassouras... 'spanador's...:
"Pixe... pixe... pitoló...".
(Pixe é peixe. Pitoló, não sei porque, é camarão).
Vem o correio que traz notícias para uns. O jornaleiro que traz
notícias para todos. O homem coxo de bolsa na mão:
"Consertam-se máquinas de costura"
E o que conserta as finanças da gente:
"Compra-se roupa velha,
sapato velho,
qualquer bejeto usado..."
O doceiro. O pregão dele parece um shottisch:
"Olha o duceiro,
olha o duceiro,
olha o duceiro
perticular..."
O negro velho das cocadas, com uma saudade pobre da vida que foi um dia:
"Cocada...
preta e bramca
preta e branca
e cor-de-rosa..."
O caboclo do baú gostoso:
"Soberano, gargalhada,
biscoito fino, bananada...
Ninguém me chama, voum'imbora!
Daqui a pouco não tem mais nada!
Soberanôoo!"
Quando o sol se apaga e as lâmpadas se acendem:
"Sorvetinho, sorvetão
sorvetinho da ilusão!
Quem não tem seu dinheirinho
não toma sorvete não...
sorvete, iaiá,
é de quatro calidade...
côco, creme, abacaxi e manga..."
E já veio o angú da baiana, veio "a sorte corre hoje", veio
o melado de Campo Grande, o óelo de côco, o óleo de
babosa, o sabão da costa, pregador de roupa, o saquinho do café.
Vem então, triste, triste:
"Minduim... torradinho... tá quentinho..."
Vem o italiano que vende as canções em voga. Vem com a filha
que tem sete anos. Ele faz o prólogo:
"Mamãe, escuta,
abra a janela.
Parece um gramafone
mas é uma cantiga bela.
Io trabalhava
numa pedrera
perdi o braço direto
e fiquei desta manera.
Tenho seis filha
des da primeira
e a menina que vai gantar
é a tercera..."
E a menina canta afinadíssima:
— Qui vantage Maria leva?
É boa…
Como é qui Maria vive?
À toa…
…
"400 réis as canções da moda… 400 réis!".
Depois há um intervalo em que todas as vitrolas, rádios e
fonógrafos da vizinhança agem. E afinal, perdido no silêncio
do bairro adormecido, o último pregão anuncia longe, que
a vida continua:
"A Noite... O Globo... O Diário da Noite".
Álvaro Moreira
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