Quero fugir e não posso.
Quero correr e me sinto
colado no chão da esquina.
Se a noite ao menos pudesse
fazer com que me esquecesse
da fria luz que, no quarto,
sobre o teu corpo morria.
Oh gargantilhas de espanto
na esconsa perdida!
Se a noite ao menos pudesse,
apagar o riso insano
que deste para outros homens,
a esquimose de teu riso
na carne dos transeuntes.
Taça esgalga (negra rosa!)
taça esbelta onde anoitece
o vinho que me delira,
tormento,
lunar delícia
de tantas bocas viciadas
na polpa nutriz dos mundos.
Não dormias, que eu só sei
da luz verde que escorria
sobre os teus seios imersos
no mar moreno do peito.
Girafa que me alucina,
cobra, cobra,
cobra, cobra,
doida mula-sem-cabeça
batendo os cascos de vidro
no rosto do meu desejo...
Quero gritar e não posso.
Quero correr e me sinto
colado no chão da esquina.
Se a noite ao menos pudesse,
na sombra do mar do tempo,
perder o lume trigueiro,
mas tão frio, de teus olhos.
Na relva negra do púbis,
de teu púbis -- horto exíguo,
quisera pascer cuidados,
ternuras, canções de lua,
ou bem, anseios magoados
do riço mau das bromélias.
Quisera pascer cuidados...
ou esgueirado pelas bordas
do poço do mundo estéril,
fecundar óvulos mortos.
Enone,
a aurora surgia
das dobras de teu silêncio.
Vinho, aromas, luzes cruas,
e essas pupilas boiando
num charco azul de atropina.
Enone,
a aurora dançava
na festa dos teus cabelos.
Quero fugir e não posso.
Quero correr e me sinto
colado no chão da esquina.
Do livro: " Lamento da perdição de Enone", Edições Macunaíma, 1959, BA