Não incendiei a boca
para queimar a palavra
que me pregaste aos lábios;
antes, esfreguei nos dentes
o dentrifício das manhãs
— atalhei o grito
e o transformei em verso.
Não incendiei a boca
para rasgar a roupa
que me coseste ao corpo;
antes, pendurei ao pescoço
a gravata burguesa
— escondi o peito
e o colori de samba.
Não incendiei a boca
para vomitar o pão
que me lançaste ao estômago;
antes, embranqueci a língua
com o leite magro
— embrulhei a úlcera
e o desmanchei em tédio.
Não incendiei a boca
para descalçar o sapato
que me ataste aos pés;
antes, guarneci-os de botas
para o passo certo
— livrei-me do abismo
e me tranquei em mim.
Não incendiei a boca
para dar fim à dor
que me plantaste à vida;
antes, sufoquei-a nas mãos
para me fazer poeta.